Crónica de Emanuel Graça

Na tradição popular oral, o elemento ‘mar’ alberga consigo um conjunto de misticismos que ao longo da história foram alvos de estudo, exploração e até desconstrução. A evolução e o consequente rigor científico acabaram por desenvolver ferramentas cruciais à sua interpretação; e talvez hoje em dia pouca gente se deixe acreditar em adamastores ou em divindades mitológicas que nele possam habitar, embora, reconheço, tudo isso se trate um mundo admirável. Talvez a partir de um ponto de vista analítico seja mais justo e honesto dizermos que o mar sempre foi para o homem uma fonte de sustento (também de inquietação). E de muita inspiração. Talvez seja o mar que nos chama.

No mês de junho do ano passado, e inserido na programação do festival “Mareato”, tivemos um momento de comunidade e identidade bastante bonito junto ao Largo do Farol, na Barra; numa parceria entre a câmara municipal e o 23 milhas, projecto importantíssimo para a vitalidade cultural e comunitária do município, foi tocado um álbum fundamental da música portuguesa: “Por Este Rio Acima”, disco de Fausto Bordalo Dias editado em 1982, foi tocado na íntegra pela banda portuguesa Lavoisier, que estiveram acompanhados por alunos de algumas escolas de música locais. Pessoalmente, vislumbrei durante aquele concerto um cenário de esperança (porque não estava à espera de ver miúdos a tocaram um disco com tanta densidade e simbologismo – seja ele levantado pelo seu valor musical ou pela sua própria narrativa, que é inspirada no livro “Peregrinação”, da autoria de Fernão Mendes Pinto).

Fausto Bordalo Dias, um dos mais iluminados cantautores da sua geração e da história da música em Portugal, faleceu no primeiro dia deste mês, aos 75 anos. O seu legado é assinalável e bastante idiossincrático. Se olharmos cronologicamente para a sua obra facilmente entendemos que se deixou afunilar (e não o digo num sentido pejorativo) pelo seu fascínio em relação ao mar e em relação ao tratamento e celebração contemplativa da cultura portuguesa (embora fosse sempre inventivo e gostasse, pelo meio, de fazer alguns desvios): viagens, descobertas e redescobertas, epopeias, tragédia, enredos in-media-res, as histórias dos viageiros. Escreveu e tocou como ninguém a profundidade desconhecida de um mar que o foi sustentando, inspirando e inquietando.

E nós vivemos num canto privilegiado. Se em Portugal temos um património marítimo colossal – e se “nos tornámos grandes” a partir do mar – em Ílhavo temos mar e temos a ria, lado a lado. Temos igualmente um império de histórias fabulosas e heróicas – embora também trágicas (não existem heróis sem tragédias) – de gentes que circundaram e viajaram por estas bolsas de água alcançando proezas sobrenaturais (e em muitas delas sobreviver atingia essa categoria de “sobrenatural”). E uma cidade e antiga vila que cresceu com elas!


Fausto cantou e despertou todos os alquimistas dos mares e talvez por isso eu consiga ouvir espelhado nas suas canções ecos desta região. A sua obra será sempre para celebrar, mas também constitui um belo objecto de reflexão: seja ela individual ou de um povo inteiro. É o povo que canta. E é o mar que nos continua a chamar.

“Ó, sentir sempre no peito
O tumulto do mundo
Da vida e de mim
E eu e o mundo
E a vida
Ó mar
O meu coração fica para ti
Para ter a ilusão
De nunca mais parar”

Fausto Bordalo Dias em “Quando eu morrer”

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