Por: Diogo Ferreira

Há quem diga que vivemos na Era do Capitalismo Tardio e que se vai autodestruir estrondosamente, mas o que é certo é que prevalece, não há bicho que o mate e mesmo quando houve – lembremos a pandemia – parece que o tornou mais forte; o 1% é cada vez mais violento e esfomeado, enquanto o 99% definha. Há quem diga que vivemos numa Era em que ao virar da esquina estará uma máquina, ou um exército delas, pronta a dominar a Humanidade. Há ainda quem diga que vivemos numa Era que ultrapassa qualquer conhecido tipo de oligarquia ou capitalismo selvagem (que podia ter sido dizimado pós-crise de 2008, mas a cúpula do poder achou por bem salvar bancos em vez de pessoas), em que o mundo tecnológico dos milionários sem escrúpulos se cruza e mistura com a política (a realpolitik mesmo) populista e farsista.

Ou então, combinamos todas estas noções sociais, económicas e políticas, e descemos o nível da conversa ao mundano e ao quotidiano, dizendo que vivemos na Era do Demasiado. E o Demasiado é tanto que não há tempo para nada.

O Demasiado é, em suma, o resultado de todas as noções atrás mencionadas, e nós, humanos trabalhadores, com famílias, responsabilidades e passatempos, mas também com dificuldades e mágoas, ou sem amigos e sem amparo – porque neste mundo há de tudo (lá está, às vezes, até em demasia) –, somos os peões autómatos; primeiro porque fomos levados a isso, e em segundo porque acabámos por nos colocar confortavelmente nessa posição.

Há demasiado dinheiro e não chega para todos ou mesas fartas e quase ninguém come, há entretenimento a rodos e pouco se aproveita dele, e pelo meio há genocídios e crianças que só conhecem a morte. Peguemos então em dois exemplos jocosos. Um deles é o futebol, que já há a mais. Dá cada vez menos prazer ver a nossa equipa, porque joga de dois em dois dias e a qualidade não é a desejavelmente alta, pois não há tempo para treinar, muito menos para descansar – o dinheiro e o lucro ganancioso sem olhar a meios vão matar o futebol. O mesmo se aplica ao segundo exemplo: a Formula 1. Há uns anos ninguém queria saber daquilo nos EUA ou até no Médio Oriente, mas, de repente, veio uma enxurrada de petrodólares que tornou esse desporto num circo de marketing sem sentido em que o carro mais rápido e o melhor piloto já nem sempre são o mais importante.

Em casa, nos nossos sofás ou camas, com os olhos afunilados no ecrã, passamos mais tempo a ver trailers e a escolher o filme certo do que realmente a ver uma obra de arte cinematográfica. Os demasiados serviços de streaming tiraram-nos a vontade de ver alguma coisa, não só pelo tempo que perdemos a escolher (acabando eventualmente por não escolhermos nada), mas também pelo lixo que nos dão após cada mensalidade paga. Começam a ser raros os filmes que nos fazem questionar o que andamos aqui a fazer – felizmente os livros ainda têm capacidade para isso, porque os escritores, essas criaturas complexas e teimosas, são resilientes. O streaming é só e apenas explosões, efeitos especiais, comédias recalcadas e séries de true crime sobre acontecimentos que nem sempre têm uma conclusão, fazendo-nos ficar agarrados àquilo durante três ou quatro episódios para, em troca, recebermos mais perguntas do que respostas.

E daí passamos para o telemóvel. Agora chamam-lhe doomscrolling, que significa passar horas de post em post, de reel em reel, hipnotizados, letárgicos e, claro, autómatos. E se ao fim de três segundos o reel não for direto ao assunto, passamos para outro e ficamos enervados e sedentos de mais conteúdo e informação tão desnecessária quanto contraproducente, que só nos deixa ansiosos. E vamos deprimindo, porque não há nada para fazer, mesmo quando temos 300 canais na box, Netflix, YouTube, Spotify ou, no meu caso, centenas de discos e livros e um exterior para explorar. Escrevi e publiquei dois livros e alguns pequenos textos nos últimos dois anos, mais os artigos de opinião que vão populando este jornal, mas já podia ter escrito mais. Por muito que queira pôr em prática o estoicismo que tanto prezo, sendo já capaz muitas vezes de expulsar de mim fardos que não são meus ou ser uma pessoa melhor em vez de apenas dizer que a sou, ainda não consegui aceder à moderação que essa filosofia prega, tornando-me, como tantos de vós, catatónico, a viver numa alternância de passividade e de excitação repentina – 8 ou 80, sendo que o 8 vence muitas vezes o 80, e cá ficamos algemados ao telemóvel, ao doomscrolling, às conversas à distância ou à busca infindável pelo filme que vinha mesmo a calhar. E é pena, porque este é o momento em que a excitação, convenientemente sustentável, seria tão necessária para revertermos o rumo das coisas – para debatermos, para nos tocarmos intelectual e fisicamente, para sermos melhores e mais ativos.

Este é certamente um dos contributos mais vulgares que dei a este jornal e a quem nos lê, porque é mais um discurso inflamado do que um assunto profundo que já me tenha prestado a dissecar antes – mas também o acho importante, porque é o mundo real dos nossos dias no Ocidente, são os problemas do Primeiro Mundo que nem deviam ser problemas.

O facto é que a bolha vai rebentar, o Demasiado vai ser mesmo demasiado, o tempo e as capacidades serão menores e teremos inevitavelmente de regressar ao básico. Não vai ser bonito. Os menos preparados andarão perdidos por caminhos áridos, à procura da terra prometida que tem tudo o que se perdeu – talvez demorem anos ou nunca lá chegarão, porque estará tudo destruído. Por seu lado, os mais cientes também passarão por tormentas, mas talvez, na melhor das hipóteses, tenham algumas ferramentas que os farão suportar a falta do Demasiado em prol do essencial, que alimentará a alma e a inteligência, tal como o imperador Marco Aurélio almejava há 2000 anos quando escreveu as suas “Meditações”.

Publicado n’O Ilhavense, nº 1366, de 1 de fevereiro de 2025.
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