David Calão
A famosa orelha de que Vincent Van Gogh se separou é, provavelmente, o maior cliché da história da arte. Um pouco menos conhecida, no entanto, é a orelha – o ouvido, para ser rigoroso – do seu irmão Theo, que durante toda a sua vida foi o principal confidente das angústias e alegrias vividas por Vincent. Esta história está espelhada nas centenas de cartas trocadas entre ambos e que são hoje a principal fonte de conhecimento biográfico acerca do famoso pós-impressionista holandês e sobre aquilo que pensava sobre a sua arte, a sua vida e sobre o mundo.
Theo merece um lugar especial na história dos seres humanos. O seu legado é, não só o importante trabalho de arquivar as palavras do seu irmão, que hoje nos permitem conhecê-lo melhor, mas sobretudo o de ter sido o seu principal interlocutor e um ouvido atento e leal.
Outro cliché, não da história da arte mas talvez da história da imprensa, é o de se dizer que nada é mais velho do que o jornal de ontem. Como em todos os clichés, existe nele uma verdade apenas parcial. Está a ele subjacente uma ideia de inutilidade do que é velho: usamos os jornais antigos para limpar vidros, para proteger o chão das nossas casas de pingos de tinta quando estamos a pintar uma parede ou para embrulhar peças de loiça quando nos mudamos – todas estas coisas muito pouco relacionadas com o conteúdo escrito nesses velhos papéis.
Considero, no entanto, que nada é mais presente do que o jornal de ontem ou do que os jornais de ontem. É o que li ontem que faz os olhos com que leio hoje. Os nossos mitos comunitários, as nossas histórias, o nosso posicionamento enquanto cidadãos numa cidade, num país, no mundo, são feitos de várias centenas ou milhares de jornais de ontem. Mais do que sermos o resultado do que fomos ontem, somos a leitura que fazemos do que fomos ontem, e isso só se faz tendo acesso a um poderoso recurso: arquivo.
Como Theo e Vincent Van Gogh nas cartas que trocaram, a cidade mantém uma conversa contínua consigo própria nas páginas deste jornal e cabe a quem o faz usar a orelha de Van Gogh – Theo Van Gogh – para escutar, interpretar e interpelar o sentimento desse espírito vivo que é a cidade. Um espírito que tem as suas energias criativas, as suas alegrias e as suas angústias, como qualquer espírito de algum génio. E cabe-lhe ser tão representativo, tão honesto e tão fiel para com esse espírito vivo quanto possível.
Porque quem quer saber alguma coisa acerca do que se pensava neste lugar, para poder pensar sobre este lugar, dirige-se ao Centro de Documentação de Ílhavo onde pode consultar já quase um século de exemplares deste jornal e aí perceber como se falava, como se escrevia, e como se pensava quando se decidiram coisas que são hoje a arquitectura do espaço que habitamos.
É fundamental, portanto, que quem hoje cumpre esta função de interlocutor, ou seja, quem escurece de tinta as páginas deste jornal esteja muito atento àquilo que a cidade está a dizer. Que esta orelha escute com atenção as vozes, os sentimentos e os anseios deste espaço vivo. E que, ao fazê-lo, a represente, a reporte, para o presente e para o futuro, porque disso depende a nossa capacidade de pensar enquanto comunidade.
Theo and Vincent Van Gogh trocaram uma longa correspondência durante as suas curtas vidas. Theo guardou todas as cartas, Vincent terá guardado muito poucas ou quase nenhumas. Talvez Vincent as tenha usado para proteger o chão dos pingos de tinta, não sabemos. O génio não dispõe de tempo para se preocupar com a História. Agradeçamos, portanto, à orelha de Theo, e façamos jus a esse exemplo de amor e dedicação. E agradeçamos a este jornal, por há quase um século ser a orelha de que esta cidade não se separa.