Recentemente, num daqueles concursos televisivos em se põe à prova o conhecimento na expectativa de levar para casa prémios chorudos, propunha-se a um concorrente que completasse corretamente a seguinte frase: “No Carnaval de Vale de Ílhavo, sai à rua um grupo de mascarados conhecido por …”. As hipóteses de resposta eram “Cavalhadas”, “Cabeçudos”, “Caretos” e “Cardadores”. Evidentemente baralhado, e já depois de ter desperdiçado uma ajuda (que lhe eliminara a resposta “Caretos”), o homem apostou em “Cabeçudos”. Escusado será dizer que rapidamente o ecrã se iluminou de vermelho: Resposta errada.

Fosse um concorrente ilhavense e não teria dúvidas que o grupo exclusivamente masculino, de traje característico composto por meias de renda, cintos carregados de chocalhos, roupa íntima feminina e grandes máscaras feitas de pele de carneiro com ornamentos de penas, olhos de cortiça, nariz comprido de tecido vermelho e algodão, um bigode de cauda de boi e juba farta em fitas de papel colorido é conhecido por Cardadores.

O Carnaval está à porta e os cardadores de Vale de Ílhavo já se preparam para a grande festa. Este ano, pelas contas de Francisco Pinho (ou, como gosta de ser tratado, Xico Estoira) – o mais velho do grupo – deverão ser “perto de vinte” cardadores.

Origem desconhecida, mas muito antiga

Ninguém sabe ao certo quando ou por que razão apareceram os cardadores. Há teses que alegam que os disfarces são inspirados em máscaras indígenas trazidas do Brasil, outros que preferem associá-los a um estilo de vida marcadamente rural e aos rituais primários que dessa vivência terão surgido; já se fizeram estudos, investigações académicas e jornalísticas sobre o assunto, mas certezas, ninguém as tem. “E ainda bem!”, defende Lourenço Catarino, cardador de 29 anos, para quem boa parte da mística passa por esta incerteza quanto ao passado.

Não haverá muito espólio que seja mais antigo que umas fotografias dos anos de 1960 que a Associação dos Cardadores de Vale de Ílhavo tem expostas na sua sede. Mas Xico Estoira, que saiu à rua como cardador pela primeira vez em 1983, recorda relatos de antigos cardadores, já falecidos, cujos pais, avôs e até bisavôs tinham sido cardadores.

Supostamente, existiram outros registos (diários, cartas e outras relíquias), mas ter-se-ão perdido com o tempo. A tradição não teve, pois, outro remédio se não passar de boca em boca, de cardador em cardador.

Nos dias de hoje, registos é o que não falta. Todos os anos, os cardadores são fotografados por milhares de pessoas e merecem o interesse de investigadores, agentes culturais e imprensa. As manifestações públicas no domingo gordo e na terça-feira de Carnaval são a parte mais visível do seu ritual, mas há outros momentos dignos de referência.

Um longo ritual para seguir à risca

Um mês antes do Carnaval, há que preparar a “caserna” para acolher as reuniões diárias do grupo. Esta “caserna” é uma pequena casa de eira, sem instalação elétrica, que serve de quartel-general ao grupo neste período de preparação. É lá que, à luz de candeeiros a petróleo, se dá a integração dos “novos”, os jovens aspirantes a cardadores. Este rito de iniciação passa pela construção das máscaras, pelo ensaio das danças e dos urros e por toda uma aprendizagem sobre as tradições, regras e vivências características dos cardadores. Também é lá que se ensina a “cardar”.

Regra de ouro: nesta “caserna”, só entram cardadores. A entrada é feita mediante senha e há um compromisso de confidencialidade para com os segredos do grupo que por todos é levado a sério. Esse é, aliás, um dos requisitos para se ser cardador – o culto do secretismo e do mistério. Além disso, há que ser de Vale de Ílhavo, sentir a terra como sua, estar solteiro e disposto a beber vinho.

Na noite de sábado para domingo de Carnaval, o grupo anda de casa em casa, de visita a antigos cardadores, fazendo-se anunciar pelo toque do búzio ou do corno e brindando, a cada paragem, com os anfitriões. A este ritual, que se prolonga noite dentro e termina, quase sempre, já depois de amanhecer, chama-se Noite da Pregoação ao Santo. O “santo” é o pipo de vinho que os acompanha e do qual sai o “néctar” bebido à saúde uns dos outros.

O Carnaval de Vale de Ílhavo

O desfile do domingo de Carnaval marca o momento em que os “novos” vestem pela primeira vez os trajes de cardador. Estes mascarados são as estrelas do corso carnavalesco de Vale de Ílhavo, um desfile genuinamente português, inspirado nas tradições daquela localidade e organizado, todos os anos, pel’Os Baldas, uma associação cultural e recreativa local.

O desfile, que (assim o tempo ajude) se realiza no domingo gordo e na terça-feira de entrudo, conta “sempre com mais de 400 participantes e, este ano, deve ultrapassar as 500”, diz João Torrão, presidente d’Os Baldas. Quanto ao número de pessoas a assistir, é mais complicado fazer previsões. Depende muito do tempo. “Com um bocadinho de chuva, devemos ter por volta de 4 mil pessoas. Se estiver sol, o número sobe bastante”.

As condições meteorológicas são determinantes não só para o sucesso do desfile, mas, antes disso, para decidir se há ou não condições para sair à rua. A pouco mais de uma semana dos grandes dias, “ainda é cedo, mas as previsões a longo prazo não são muito favoráveis”, verifica João Torrão, preocupado. Mário Simões, também ele dirigente d’Os Baldas, é mais otimista: “O tempo está instável. Ora se apanha um dia de chuva, ora se apanha um dia de sol. Pode ser que nos calhe bom tempo…”.

Já houve anos em que, pelas condições climatéricas adversas, os desfiles tiveram de ser cancelados. “É uma grande frustração para todos, há muito trabalho, tempo e dinheiro investidos na preparação do corso”. No entanto, adiar o desfile para nova data parece uma hipótese fora da mesa. “Já fizemos isso [adiar o corso carnavalesco] e não correu nada bem”, explica Mário. “É como adiar o natal ou a passagem de ano. O espírito das pessoas é completamente diferente”.

No Carnaval de Vale de Ílhavo desfila-se ao som de música cantada em português. “O Carnaval de Vale de Ílhavo não pode nem quer competir com os carnavais importados que vemos noutras localidades. Nós jogamos pela diferença, no nosso campeonato. E, aqui, somos os maiores”. O veredicto é unânime: “Não há Carnaval português melhor do que o nosso”.

Este ano, Os Baldas contam com onze grupos participantes com os respetivos carros alegóricos. Quanto à participação dos cardadores, “não há nada combinado”, explica João Torrão. “Os cardadores são de cá da terra, por isso, estão por cá. São independentes. Quando quiserem, aparecem e, quando quiserem, saem”.

Desengane-se, no entanto, quem pense que os cardadores são um grupo anárquico, que só faz o que lhe apetece. Nada disso. Os cardadores regem-se por normas próprias e obedecem a hierarquias bem definidas. A cada ano, novos chefes são votados. Uma vez eleitos democraticamente, os chefes tornando-se responsáveis por tudo, da logística à disciplina.

Quando decide casar-se, um cardador perde quase todos os privilégios: não mais pode ser eleito chefe, não tem sequer direito a voto e só pode continuar a sair com o grupo se os solteiros assim o autorizarem.

Segunda-feira de Carnaval é dia de ir apanhar “bichaneiras”, ramos de mimosa ou acácia que utilizam para decorar a carroça com que sairão no dia seguinte, terça-feira de entrudo, para percorrer as ruas de Vale de Ílhavo. Cardadores “novos” ou elementos que estejam a cumprir castigo aplicado pelos chefes, transportam máscaras antigas e outros elementos que fazem parte da mística vivida na caserna. Atrás segue, novamente, o “santo”, para o caso de uma incontrolável e repentina sede os atacar pelo caminho e, de igual forma, para cumprirem a nobre missão de “dar de beber a toda a comunidade”, explica Marcelo Miranda, também ele, cardador.

Findo este percurso, é tempo de se reunirem naquela a que chamam “Casa de Saída” (normalmente, a casa de um dos elementos do grupo), onde vestem as roupas femininas que lhes servem de traje e colocam as máscaras para aquela que será a última debandada do ano.

O som dos chocalhos, os graves urros e o intenso odor ao cada vez mais raro perfume Tabu, com que borrifam abundantemente as máscaras, anunciam a sua aproximação.

Vale de Ílhavo é uma comunidade com raízes fortes e, a par do pão, tem no Carnaval uma das suas principais bandeiras. Orgulhosamente, os cardadores mantêm-se fiéis a si próprios e aos hábitos e tradições que herdaram. Não receiam o desaparecimento. Afinal, como repara Xico Estoira, “já no meu tempo se dizia que, mais ano, menos ano, os cardadores estavam condenados a desaparecer. Passaram-se 37 anos e ainda cá estamos”.

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