Por David Calão
Jorge Louraço Figueira é o novo diretor artístico do 23 Milhas, o projeto cultural do município de Ílhavo.
Natural da Nazaré, é dramaturgo, professor, investigador, foi crítico de teatro no Público onde ainda vai assinando artigos de opinião. No seu último artigo enquanto crítico escrevia “Quando assumi o papel de crítico teatral, imaginei uma comunidade de debate onde o teatro era não tanto um espelho que reflectia a sociedade, mas mais um martelo que forjava a realidade.” – veremos adiante que esta forma de ver o fenómeno artístico não se cinge ao teatro e à prática da crítica. Nesta entrevista procurámos entender como vê a cultura e que rumos pretende dar ao projeto cultural mais pontuado no programa de apoio à programação da Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses da Direção Geral das Artes.
● O 23 Milhas é um projeto municipal e, como tal, um projeto com uma missão relativamente abrangente. Como se perspetiva dirigir um projeto tão transversal, tanto a nível disciplinar como de público?
A transversalidade permite fazer o cruzamento das áreas artísticas. Em vez de segmentar as diferentes áreas e os diferentes públicos, interessa-me fazer experiências de cruzamento. Isso também me permite aproximar-me daquilo em que me sinto mais à vontade que é o teatro e a escrita para teatro. E também me permite fazer experiências noutras áreas, como a do teatro musical, algo com que tenho alguma familiaridade porque muitos espetáculos que fiz tinham esse cruzamento.
● O teatro oferece as pistas para esses cruzamentos?
O grande farol para qualquer dramaturgo nascido no século XX é o Brecht e no teatro brechtiano há sempre uma grande presença da música.
Acho que é nesse lugar que procuro.
O projeto tem tido um enfoque grande na música, e eu acho que há espaço para a teatralidade, também para fugir a uma relação demasiado íntima com as indústrias culturais, das rádios, das editoras – um mundo que tem muito de artístico mas também muito de comercial. Também é importante perceber até que ponto vai o papel de um equipamento público nesse mercado.
● A programação aproxima-se muito da dramaturgia, nesta perspetiva
Sim, na verdade a minha intenção era que o projeto fosse um projeto de histórias para contar, como as Mil e Uma Noites. Há muitas histórias por contar e Ílhavo está cheio de histórias. Há todas as histórias do bacalhau, sendo que muitas já foram contadas, mas outras não. E também a propósito da Vista Alegre. Muitas já estão contadas porque são histórias heróicas, mas há muitas histórias que não são heroicas. A perspetiva feminina é muito importante, por exemplo. Isto é quase um lugar-comum, mas a história está contada de um ponto de vista hegemónico – branco, heterossexual, masculino – e chega a ser absurdo, porque nós até temos um dramaturgo que escreveu sobre a pesca do bacalhau de um ponto de vista homossexual, ainda que filtrado. Está por fazer essa apropriação da obra do Santareno, por esse ponto de vista.
● Como é que isso se repercute na programação?
A programação vai ter coisas destas. Vamos ter duas leituras de sentenças de condenação de mulheres pela inquisição, em regime de leitura participativa. Vamos ter logo no primeiro trimestre uma coisa chamada 78 rotações de libertação da memória sonora. O Pedro Aragão, da Universidade de Aveiro, músico, tem uma pesquisa sobre os primeiros 50 anos registos discográficos de vários territórios – Moçambique, Brasil, Portugal, e outros cruzamentos – vamos ter apresentações de algumas canções desse tempo e a audição dos registos através de um gramofone.
A ideia é ter muitas pequenas narrativas, o que obriga também a que se aposte mais na criação local. Vamos ter artistas convidados e artistas residentes, em que os artistas residentes farão uma criação original. A dramaturgia há de estar mais à volta de quem é anfitrião e quem é hospede. Além disso, o projeto já tem muita dramaturgia, por causa das diferentes polaridades e também por causa desta oposição entre o Inverno na Vista Alegre e Verão Costa Nova. Quero ter mais atividades na Costa Nova no verão, e mais festivas.
● A propósito dessas histórias por contar, é possível encontrar alguns paralelos entre Nazaré e Ílhavo. numa construção identitária em torno de uma visão idealizada da pesca e do mar. Como é que se trabalha a cultura num tempo em que as identidades são cada vez mais diversas e em que esse é um lugar de tanta disputa?
O diagnóstico está feito há muito tempo: o excesso de identidade é um diagnóstico de Eduardo Lourenço sobre Portugal, uma crítica à propaganda do regime salazarista da qual não nos livramos assim tão facilmente. Há um filme do João Canijo, “Fantasia Lusitana”, que, através da montagem em sucessão de excertos de filmes do antigo regime, mostra como o Estado Novo criou uma imagem de um país idílico. Ílhavo faz parte disso, porque o heroísmo dos bacalhoeiros era importante para ser comparado ao heroísmo dos descobrimentos. O poder simbólico desta mitologia é muito difícil de desmontar, mas é um trabalho que tem de ser feito.
● As comunidades tendem a ser um pouco avessas a essa discussão porque a sua identidade constitui-se, muitas vezes, através dessas narrativas. Como é que se faz essa conversa sem perder o ouvinte?
Isso é muito difícil. O importante é não entrar uma lógica de crítica a essas coisas. É importante “ir à volta”. Mas temos de chamar à atenção para as coisas e, se nós formos contando as histórias, as coisas mudam. E como os recursos são finitos, nós temos de escolher que histórias queremos contar. Eu aqui gostava mesmo que algumas histórias fossem contadas.
● Quando discutimos a cultura , costuma surgir um conjunto de metáforas do pensamento económico. A importação e a exportação, a produção interna e a externa. Há sempre um conflito entre o acolhimento e a criação local, parece. Como se resolve?
A minha urgência de fazer coisas novas é que me leva a procurar uma justificação mais ampla. Mas essa urgência toda a gente tem e é preciso respeitá-la. Quando os programas têm uma proporção de acolhimentos muito superior à de criações próprias, isso abafa a criação local inevitavelmente. Por outro lado, sem vermos as coisas que são feitas no mundo não conseguimos fazer nada. A ideia da exportação é importante porque ela permite completar o circuito – não só vermos o que os outros fazem e isso interfere no que nós fazemos, como os outros vêm o que fazemos e isso interfere no que eles fazem. A rede, em princípio, deve proporcionar isso.
● Existe também uma lógica de proximidade associada?
A experiência cultural e artística só se completa quando fazemos alguma coisa, quando estamos ativos e participamos. Claro que as artes, como o próprio nome indica, são técnicas, e como tal precisam de tempo e de espaço. Um centro cultural tem esse papel. No fundo serve para nos preocuparmos mais com aquilo que está próximo das pessoas, que pode ter significado para elas – sejam do município ou da região, mas que estejam próximas geograficamente, e se possam rever e participar. Tirando-as do circuito dos meios de comunicação de massa, das redes sociais, da televisão. Porque esse é o circuito da mercadorização, em que a fruição cultural está sempre sujeita a uma ideia de lucro, o que tem sempre consequências no vínculo que estabelecemos com os outros e com a prática artística.
● Mas não é, de alguma forma, necessário um namoro com a cultura de massas para cativar o público?
Eu acho que não é necessário. Claro que se fizermos esse namoro, resulta muito melhor em termos de números. Porque a música que se traz passa na rádio e dá na televisão, na imprensa, no Youtube, e isso é muito eficaz. Mas se trabalharmos numa lógica mais pessoal, e conseguirmos criar encontros pessoais, isso vai alimentar a audiência dos espectáculos. É mais arriscado e demora tempo a consolidar, mas a minha experiência, nomeadamente em Coimbra, ao fim destes anos todos, é que dá bons resultados. Claro, tem de haver uma rede, mediação, mas depois as pessoas vêm e a sua fruição é mais pessoal também, porque elas estão implicadas no que estão a ver.
● Quando olhamos para a estrutura do 23 Milhas, com rubricas já muito estabelecidas, cinco festivais consolidados, há espaço para introduzir coisas novas ou é uma questão de mudar as coisas que já existem?
Eu acho que são tão emblemáticas e tão bem caçadas – nos nomes, nos ciclos, em tudo – que seria um disparate deitá-las borda fora. A minha ideia é manter genericamente o que está e mudar algumas coisas. Uma mudança será a de que no próximo ano não irá haver Ilustração à Vista, que vai passar a ser bienal. Mas a minha ideia é mudar mais por dentro, segundo o critério de contar histórias. De ter mais criação local – quando digo local quero dizer regional, não tem de ser com pessoas de Ílhavo, mas são coisas feitas aqui que nós achamos que pode ser feito e precisa de ser feito para reagir ao mundo da maneira como ele está.
Não dá para ter como símbolo o farol e não estarmos a olhar para o mundo. E a mediação tem de ser realmente mediação, tem de ser um conjunto de processos que servem para descascar os eventos.
As criações originais e os festivais têm de ser pensados mais como projetos de intervenção que tenham mais a ambição de mostrar e de debater alguma coisa, do que apenas mostrar algo para toda a gente ficar contente.
● Falando na proximidade geográfica, apesar de existir uma comunidade intermunicipal, parece não existir muita concentração na cultura na região. Faria sentido estabelecer laços mais fortes com outros municípios?
A unidade simbólica que nos interessa é a da ria, porque é aquela com a qual o município tem uma relação mais duradoura que vai além das divisões administrativas. É esse espaço da laguna, que tem a ver com fertilidade, com acesso, com mistura, que nos deve servir de inspiração. E Ílhavo tem de ter uma ambição mundial porque ela tem, por causa do porto e das campanhas do bacalhau uma dimensão internacional. Assim como a história da Vista Alegre, que exporta para todo o mundo. Um município com uma vocação internacional não se deve prender a rivalidades regionais. Além disso, tanto para a marinharia como para o fabrico da porcelana é necessária perícia, porque são empreitadas que não requerem apenas trabalho braçal, têm uma dimensão técnica também.
● Não é por acaso que às atividades da pesca chamámos “as artes”…
Exatamente. Isso implica ter pessoas qualificadas que dominam essas técnicas, que exigem bastante perícia. Essa perícia gera também uma demografia que é mais qualificada em muitos outros lugares. Isso é partilhado com esta região do Vouga, que tem pequenas indústrias que foram importando tecnologia, saberes.
Tudo isso tem a ver com características que todo o distrito, toda a região, partilha.
● Estamos a começar um novo ano, o que podemos esperar em 2023?
O que eu espero é um 2023 em que estes espaços sejam lugares de aprendizagem e de prática. A constituição atribui ao Estado a obrigação de facilitar a fruição e a criação das artes.
A fruição está mais ou menos garantida pelos equipamentos públicos, a criação nem tanto.
Um espaço destes tem de ter as artes no centro da sua missão, e é isso que espero que aconteça, com as artes cumprindo a sua missão, por vezes negativa, de mostrar o mundo como ele é, na esperança de, depois de o conhecermos, podermos transformá-lo.
Publicado no jornal O Ilhavense de N.º1316 de 1 de janeiro de 2023