A Vista Alegre rendeu-se à “nona arte”. No ano em que comemora 195 anos, a histórica marca ilhavense quer provar que a superfície tridimensional e brilhante de uma peça em porcelana pode ser suporte para uma “história aos quadradinhos”. A coleção Je Kraak recupera o estilo de decoração milenar da porcelana chinesa em azul-cobalto, atualizando-o para o século XXI através da arte de alguns criadores contemporâneos de banda desenhada.
A primeira peça desta coleção recorda e celebra a própria porcelana. Da autoria de Penim Loureiro, Mare Clausum recua ao século XVI para contar a história da introdução da porcelana na Europa e o papel dos portugueses na globalização deste misterioso material branco, translúcido e brilhante que, desde essa altura, fascina o ocidente.
Porcelana chinesa das carracas portuguesas
Penim Loureiro é arquiteto de formação e de profissão, mas, desde sempre, um apaixonado pela ilustração e pela banda desenhada. Ao convite da Vista Alegre para ilustrar a primeira peça de “uma coleção dedicada à banda desenhada que servisse de fusão entre o imaginário da antiga porcelana chinesa e a narrativa contemporânea”, acedeu “sem hesitar”.
Quanto à história a contar, a Vista Alegre deu-lhe “liberdade total, tanto ao nível do argumento, como do desenho”. “A ideia não foi imediata”, mas Penim Loureiro acabou por recorrer aos livros de História:
A invenção da porcelana ter-se-á dado na China, há mais de mil anos. Pensa-se que o primeiro europeu a ter contacto com peças de porcelana foi o navegador italiano Marco Polo, no início do século XIV, que as descreveu como algo que se assemelhava a pequenas conchas. A palavra “porcelana” advém, aliás, do italiano porcella – um búzio de concha branca, brilhante e translúcida. Só umas centenas de anos mais tarde é que este material seria introduzido no velho continente.
Em 1494, os reinos de Portugal e Castela assinavam o Tratado de Tordesilhas que estabelecia uma política de Mare Clausum (mar fechado) que, entre outros privilégios, atribuía a Portugal o monopólio das rotas de navegação marítima no oceano Índico. Com estas águas sob controlo, foram nas carracas (embarcações de grande lotação) portuguesas que as primeiras porcelanas começaram a chegar à europa.
Em pouco tempo, todo o continente as cobiçava. Entre 1602 e 1604, piratas holandeses capturaram duas destas carracas carregadas de porcelana chinesa, que leiloaram na Holanda por valores muito elevados. Surgia desta forma o termo “kraakporselein”, onde “kraak” é uma reinvenção da palavra portuguesa “carraca”, numa alusão às embarcações que tinham caído nas mãos dos corsários com a preciosa carga.
Está tudo explicado: o nome da coleção – Je Kraak (Tua carraca) – , o nome da peça de Penim Loureiro – Mare Clausum – e até o mito das conchas que serviu de ponto de partida e remate para história contada nesta talha Vista Alegre.
Um desafio técnico e artístico
Expor uma história sequencial, com princípio e fim, transpondo-a da habitual bidimensionalidade do papel para a superfície tridimensional, curva e sem limites de uma talha oriental – um pote – em porcelana foi “o grande desafio”.
“Tive de inventar um novo tipo de leitura em helicoidal [em espiral] que, neste caso, creio que resulta”, explica o autor e ilustrador lisboeta.
Para seguir a história é, por isso, necessário rodar a peça; a própria conceção da narrativa gráfica teve em conta este movimento em espiral: “começa com o mito medieval acerca da porcelana, onde se crê que esta é esculpida das conchas de porcelana e, no fim, quando o almirante holandês descobre que, afinal, os baús saqueados contêm milhares de búzios – em vez da cobiçada porcelana da china – o ciclo fecha-se numa espiral que retoma o tema do início”, explica o autor.
Ajudar a valorizar uma arte estigmatizada
Aproximar os públicos da porcelana e da banda desenhada e desmistificar ideias preconcebidas associadas a estas formas de arte são dois dos objetivos desta iniciativa que mais atraíram o ilustrador. Penim Loureiro agradece “a oportunidade de participar na credibilização de uma forma de comunicação gráfica [a BD], por vezes, tão subvalorizada”.
Este comentário do ilustrador sugere que um certo estigma social e cultural relativo à banda desenhada. Será assim?
Utilizar desenhos para contar uma história é algo que remonta aos primeiros tempos da Humanidade. Pinturas rupestres, hieróglifos egípcios, tapeçarias orientais, vitrais de igrejas: todos utilizam gravuras para narrar um acontecimento. No fundo, é também com este propósito – contar histórias – que, no século XIX, nasceu a banda desenhada.
A BD surgiu na europa, mas foi nos jornais americanos do início do século XX que alcançou o maior sucesso. Rapidamente, o aparecimento de personagens como Super Homem ou Flash Gordon levou à criação de revistas especializadas – os Comics – para a narração das suas aventuras heroicas. Uns anos mais tarde, no Japão, nasceram as Mangá que, com um estilo gráfico muito próprio, viriam a tornar-se um verdadeiro fenómeno de massas depois da Segunda Guerra Mundial. Na europa, a explosão da banda desenhada também se dá no pós-guerra, especialmente, no espaço franco-belga. É o advento de personagens como Tintin, Spirou, Lucky Luke ou Astérix.
Apesar de, hoje em dia, já ser considerada a “nona arte”, a banda desenhada ainda sofre de um certo estigma de género inferior, sendo frequentemente conotada como uma arte menor ou um produto de consumo pouco indicado a públicos mais exigentes e esclarecidos. No entanto, esta é uma ideia errada. Penim Loureiro conta que, “na europa, desde os finais dos anos 1960, a BD é uma arte adulta e destinada a um público erudito”, dando nota de que, atualmente, funciona mesmo como “uma forma de entusiasmar gerações mais jovens pela leitura e pela literatura”. Assim, o ilustrador congratula-se por “esta coleção da Vista Alegre que vem reforçar a importância da banda desenhada, desmistificando o estigma que a desvaloriza, qualificando-a”.
Mare Clausum é apresentada ao público no 30º Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora. Até 3 de novembro, todos os holofotes estão virados para esta peça decorativa, bem como para os estudos e esquissos originais de Penim Loureiro