Na madrugada de 26 de abril de 1986, Chernobyl, na Ucrânia, acordou para aquela que viria a ficar na História como a maior catástrofe nuclear de sempre. Dezenas de milhares de pessoas foram forçadas a abandonar as suas casas e a fugir daquele lugar. Muitas acabariam por morrer devido à radiação a que foram expostas e, ainda hoje, mais de 30 anos depois, viver naquela zona é, frequentemente, sinónimo de problemas de saúde nas vias respiratórias e na tiroide, desenvolvimento de cancros e diminuição considerável da esperança de vida.
Para ajudar a combater este flagelo, surgiu, em 2008, o programa Verão Azul. A Liberty Seguros, em parceria com o Centro Doviria, instituição social de Ivankiv, vila nos arredores de Chernobyl, proporcionava a crianças e jovens ucranianos, um mês de férias em Portugal, longe das radiações. O objetivo era que pudessem reforçar o sistema imunitário e aproveitar as vantagens do sol, do mar e de uma alimentação mais rica e equilibrada. A acolhê-los estavam cerca de 30 famílias portuguesas, entre as quais, algumas ilhavenses. Nestes onze anos, o projeto trouxe a Portugal mais de 100 crianças e jovens dos 8 aos 16 anos. Para eles, cada mês em Portugal pode significar mais um a três anos de vida.
“O que mais me sensibilizou no projeto foi saber que podia contribuir para aumentar a esperança de vida de uma criança”, admite Margarida São Marcos que, ao abrigo deste programa, acolhe dois meninos ucranianos desde 2014. No ano seguinte, também Pedro Viçoso e Alice Sardo se juntaram ao programa, recebendo uma menina.
Liberty deixa de apoiar o projeto
Estávamos em dezembro de 2019, vésperas de natal, quando um e-mail da Liberty Seguros surpreendeu as famílias de acolhimento: a seguradora “optou por não renovar, no próximo ano [2020], o apoio ao projeto”, podia ler-se na nota informativa.
“Um presente de natal envenenado”, na opinião de Pedro Viçoso. O mesmo pensa Margarida São Marcos que recorda momentos de grande tristeza. “Foi muito doloroso para mim e para a minha família. Sentíamos que tínhamos de nos desligar, que a separação era irremediável e não íamos voltar a vê-los”.
Em fevereiro, em declarações ao PÚBLICO, a Liberty Seguros justificava a decisão de cortar o financiamento a este projeto com base numa “alteração de estratégia” da empresa, que entendia dever focar a sua responsabilidade social “no apoio à prevenção rodoviária e também junto de associações de cidadãos portadores de deficiência”.
Justificações difíceis de aceitar pelas famílias que, de um dia para o outro, viam cair por terra as expectativas de continuar a receber as “suas” crianças. Além disso, por ter comunicado a decisão tão tardiamente, a seguradora tornou a procura de alternativas uma tarefa quase impossível. Quase…
Famílias determinadas em continuar
Inconformadas, três famílias ilhavenses, uma de Ovar, uma de Vila do Conde e outra de Lisboa, tudo têm feito, desde o início do ano, para assegurar, logisticamente, a vinda das crianças, bem como para angariar a verba necessária ao pagamento das viagens.
O primeiro passo foi contactar Inna Sheremet, do Centro Doviria, instituição ucraniana responsável pela seleção das crianças e antiga parceira do programa Verão Azul, e informar a assistente social das suas intenções de continuar a receber as crianças. Inna disponibilizou-se para, à semelhança do que tinha feito nos anos anteriores, acompanhar as crianças na viagem desde a Ucrânia. Mas continuava a faltava um terceiro agente que tratasse da logística das viagens. É aqui que surge a És per Tu, associação espanhola que acolhe crianças de Chernobyl ao abrigo de um programa semelhante ao Verão Azul e que, em articulação com as famílias portuguesas, se comprometeu a trazer as crianças de Kiev até Barcelona.
Os donativos que as seis famílias portuguesas, até agora, receberam já asseguraram estas viagens, o que faz com que, neste momento, só falte garantir as viagens Barcelona – Porto e Porto – Barcelona. Ainda assim, nem que lhes tenha de sair do bolso, para as famílias portuguesas a vinda das crianças para Portugal no próximo verão já é uma certeza.
Com 2021 no horizonte, Margarida, Pedro, Alice e as restantes famílias já pensam em estratégias para dar futuro à iniciativa. A solução pode passar pela constituição de uma associação capaz de dar continuidade ao projeto ou por um patrocinador que garanta as viagens e toda a burocracia. “O objetivo é prolongar o projeto, torná-lo sustentável e, se possível, alargá-lo para jovens até aos 18 anos”, explica Alice Sardo.
Experiências gratificantes
Minutos antes de falar com O ILHAVENSE, Margarida recebera uma mensagem pelo Messenger do Facebook. “O meu rapaz já me mandou os parabéns”, partilhou, ainda antes de começar a conversa e o brilho que lhe iluminava os olhos era indisfarçável. Era dia do aniversário de Margarida e a mensagem de felicidades de Ruslan, 17 anos, vinha acompanhada de um “Quando voará para Ucrânia?”.
No verão passado, Margarida havia prometido que, em maio deste ano, ia visitar “os seus rapazes” – expressão que utiliza sempre que a Ruslan Khodakivskyy e Roman Vasyanovych se refere – à Ucrânia, para conhecer a casa, a família e a terra deles.
Infelizmente, essa viagem terá de ficar adiada. Com o provável encargo adicional das viagens de Roman, tudo fica mais complicado. Roman, 14 anos, participou pela primeira vez no programa Verão Azul com apenas 8. Na viagem do aeroporto de Lisboa até Ílhavo, noite dentro, chorou. Margarida ainda recorda esse momento. “Mexeu comigo. Vi-me na pele daquele menino, num país que não conhecia, com pessoas que não conhecia, uma língua que não dominava, era tão pequenino”. Mas depressa, com a ajuda de Margarida e da sua família, Roman se adaptou às pessoas e ao país. Esse primeiro ano foi “uma experiência maravilhosa”, em que tudo era novidade.
Ruslan e Roman “não gostam nada de praia, dizem que a água é muito fria”. Nesse primeiro ano, para lhes garantir as tão necessárias “férias de sol”, Margarida levava-os à piscina de Vale de Ílhavo. No ano seguinte, deu-lhes a conhecer as praias algarvias “onde eles já não queriam sair da água”. Este ano não vai ser diferente. “Já tenho a última semana de julho reservada para irmos todos para o Algarve”, confessa Margarida São Marcos.
Já Pedro Viçoso e Alice Sardo souberam do projeto numa reportagem televisiva e decidiram candidatar-se. Em 2015, receberam Kateryna Melnychenko, à data, com oito anos de idade e logo estabeleceram uma “relação de grande cumplicidade e carinho”.
Por durar só um mês, esta é uma experiência particularmente intensa. “Um mês em Portugal passa num instante. Com período de adaptação e antecipação da despedida, sobra uma janela temporal demasiado curta para usufruir plenamente a experiência”. Felizmente, este ano, as crianças estarão mais tempo em Portugal. O programa espanhol, do qual, este ano, dependem, prevê uma estadia de dois meses, de 26 de junho a 25 de agosto.
Mas a experiência não se resume àquele mês de verão. Alice e Pedro passam o resto do ano a recordar os momentos passados com Kateryna e a antecipar as próximas férias. Pelo menos uma vez por semana, falam através do Viber. “Esta ligação forte faz com que não desistamos deste projeto”, diz o casal. Também Margarida comunica com Roman sempre que é possível. O rapaz já lhe disse quer vir estudar para Portugal e, como não podia deixar de ser, a casa de Margarida está de portas abertas para o receber. A ilhavense até já está em contacto com a família do menino e com a embaixada de Portugal na Ucrânia com vista a concretizar mais este desígnio. Roman diz que “quer ser camionista e viajar pelo mundo”. A inspiração, admite Margarida, advém do facto de, aos 14 anos, já conduzir o trator da família, mas esta ânsia por conhecer o mundo, mesmo que ao volante de um camião, é também reflexo da experiência que tem tido em Portugal.
O desafio da língua
Como é que uma criança ucraniana e uma família portuguesa conseguem comunicar se não falam a mesma língua? Com Ruslan, o mais velho dos dois rapazes que acolheu, Margarida começou por utilizar alguns programas de tradução online. Depois, era o jovem que ajudava a fazer a ponte para Roman, mais novo e menos habituado a essas lides tecnológicas. “Tem sido um esforço mútuo”, isto porque, ao mesmo tempo que lhes ensinava português, também Margarida tem feito um esforço por aprender um pouco de ucraniano. “Se quero que eles aprendam a minha língua, tenho a obrigação de aprender a deles”.
Também no caso de Kateryna, “a barreira linguística foi complicada”, admite Pedro Viçoso, mas Alice tinha a solução ideal. A educadora de infância socorreu-se de Ariana Domanska, uma menina da mesma idade de Kateryna que vive em Portugal há nove anos e fala ucraniano e português. A presença de Ariana não só facilitou a comunicação entre o casal e Kateryna, como deu a esta uma grande amiga.
Hoje, Kateryna já consegue manter uma conversa em português e não há nada que pudesse deixar Alice e Pedro mais orgulhosos.
Mesmo sabendo que, sempre que voltam à Ucrânia depois de umas férias em Portugal, fazem-no “mais felizes, mais saudáveis e com horizontes mais abertos”, quer Margarida, quer Pedro e Alice vivem nas despedidas os momentos mais difíceis. Numa das suas últimas noites em Portugal, já de mala feita e pronta a regressar à Ucrânia, Kateryna perguntou a Alice:
“- Alice, como diz eu quero a vocês?” – A princípio, Alice não percebeu o que Kateryna estava a tentar dizer-lhe. Uma vez mais, foi Ariana a desbloquear aquele impasse de comunicação entre a menina ucraniana e o casal português. Kateryna estava a tentar dizer, na língua de quem a tinha acolhido para mais umas férias repletas de diversão, afetos e saúde, que amava Alice e Pedro, os “pais portugueses”.