AFONSO RÉ LAU

O Museu Marítimo de Ílhavo foi ponto de encontro para as mais de 200 pessoas que participaram, no dia 28 de setembro, na Festa dos Bacalhoeiros, um encontro anual para todos quantos tenham participado na pesca do bacalhau. Este ano, Ílhavo recebeu antigos pescadores de comunidades piscatórias da Póvoa de Varzim à Nazaré.

Nesta que foi a 3ª edição deste encontro, a organização congratula-se com o “especial envolvimento da comunidade local”. Dos mais de 200 participantes, cerca de uma centena era residente no concelho. Quanto às comitivas visitantes, aquela que conseguiu mobilizar mais participantes foi a das Caxinas, em Vila do Conde, historicamente, uma das maiores comunidades de recrutamento para a pesca longínqua de bacalhau.

Do Museu Marítimo a festa seguiu para o Cais Bacalhoeiro, na Gafanha da Nazaré, onde a “Quinto Palco” esperava os antigos pescadores com uma performance teatral alusiva à pesca, simulando a larga- da de um lugre bacalhoeiro e, mais tarde, o desespero de um pescador à deriva num dóri.

Peça de ficção despertou emoções

Esta foi a primeira vez que Guilherme Piló participou na Festa dos Bacalhoeiros. O pescador, natural da Nazaré, mas residente em Vila Chã (Vila do Conde) há mais de 60 anos, confessa a sua emoção com a apresentação teatral. “As lágrimas vieram-me aos olhos. Eu vivi na pele o que foi ali apresentado”, disse com voz embargada.

Guilherme Piló vem de uma tradicional família de pescadores. Em 1961, embarcou no navio-motor Conceição Vilarinho como pescador “verde” e aí fez as primeiras campanhas ao bacalhau. Numa delas – aquela cuja memória a interpretação teatral no Cais Bacalhoeiro conseguiu despertar – não ganhou para o susto. Num “dia de muito temporal, nevoeiro e chuva”, o seu dóri afastou-se do “navio-mãe”. Naqueles momentos de solidão, em que o tempo congela, o mar parece infinito e o mundo inteiro passa a caber dentro de um dóri, “passa-nos tudo pela cabeça”, garante Guilherme. Mas o pescador nunca perdeu a esperança. Apesar de não conseguir remar – tinha os pulsos magoados – pôs em prática os seus conhecimentos de vela e seguiu com o vento. “Se não tivesse conseguido encontrar o navio, tentava navegar para a costa”, recorda. “Ali é que eu não ficava!”.

Felizmente, não foi preciso. Guilherme Piló foi um dos que, nesse dia trágico, conseguiu chegar ao navio são e salvo. Outros não tiveram a mesma sorte. “Nesse dia morreram vários pescadores” de outros navios. “O Conceição Vilarinho deu abrigo a mais de 200 dóris perdidos” matriculados noutros navios. “Ainda passámos alguns dias à procura” – conta Guilherme – “Mas a única coisa que encontrámos foram dóris virados”.

Esta e outras recordações foram partilhadas em rodas de amigos de longa data, antigos camaradas e colegas de profissão. Sempre com uma patanisca numa mão e um copo na outra porque a merenda preparada pela organização assim o sugeria.

Ao início da tarde, as comitivas seguiram do Cais Bacalhoeiro para o Jardim Oudinot, onde decorreu o almoço e a visita ao Navio-museu Santo André.

Ao almoço serviu-se memória e nostalgia

Já não há chef que o negue: existem, hoje em dia, mais de mil maneiras de cozinhar bacalhau. Basta estar atento às propostas – tão variadas – que, todos os anos, são apresentadas nos espaços gastronómicos do Festival do Bacalhau para o comprovar. Ainda assim, para estes homens, que ainda guardam no corpo e na memória tudo o que passaram nos mares gelados da Terra Nova e da Gronelândia, não há nada que aqueça mais o estômago e o coração do que a chora. A chora é uma sopa feita com cabeças de bacalhau e arroz que era preparada a bordo dos navios bacalhoeiros para consumo dos pescadores nas madrugadas, tristes e frias, depois da faina diária de pesca, escala e salga.

Nesta edição da Festa dos Bacalhoeiros foram preparados e servidos mais de 100 litros de chora e uma grande feijoada de samos, outra das especialidades da gastronomia de bordo, muito apreciada por todos os que passaram pela faina maior.

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