Em 1941, o jornalista Jorge Simões publicava “Os Grandes Trabalhadores do Mar”. Foi este livro, que reunia um conjunto de crónicas e reportagens sobre as campanhas bacalhoeiras, que, alguns anos mais tarde, serviria de mote a Fernando Garcia para uma produção cinematográfica em torno da epopeia da faina maior.
“Heróis do Mar” estreava em 15 de março de 1949 com honras de primeira página na imprensa e uma intensa campanha de divulgação. No entanto, o filme nunca alcançaria o impacto nacional e a escala internacional ambicionados, metas que só viriam a ser atingidas com “A Campanha do Argus”.
Quanto a “Heróis do Mar”, a forte conotação com a propaganda do Estado Novo e, sobretudo, a perda precoce da sua fita sonora, fizeram com que acabasse por ficar esquecido do grande público.
Agora, setenta anos depois da estreia, o Município de Ílhavo e o projeto 23 Milhas fazem justiça à história e, aos poucos, trabalham para dar nova vida ao filme. A única cópia em película foi digitalizada e restaurada pelo ANIM – Arquivo Nacional das Imagens em Movimento – da Cinemateca Nacional e, uma primeira parte, foi apresentada com música original e dobragem interpretativa ao vivo na Milha – Festa da Música e dos Músicos de Ílhavo.
Um espetáculo inovador que contou com banda sonora da Orquestra Filarmónica Gafanhense, pensada e composta pelo maestro Henrique Portovedo, e a interpretação de várias vozes ilhavenses orientadas por Alexandre Sampaio.
Leopoldo Oliveira dá a voz a Ti Petinga, interpretado originalmente pelo inconfundível António Silva de “O Pátio das Cantigas”, “O Costa do Castelo”, “Leão da Estrela” ou “A Canção de Lisboa”.
Congratulando-se pela oportunidade de participar neste projeto, Leopoldo recorda que, desde muito novo, gosta de teatro. “Quando era miúdo fazia pequenas peças ligadas à paróquia ou à freguesia da Gafanha da Nazaré, de onde sou, e ainda hoje gosto de representar”, conta. “E tem muito jeito”, acrescenta, em tom de elogio, uma colega de palco, também ela, atriz de voz na dobragem de “Heróis do Mar”. “Não tenho nada”, responde Leopoldo, lisonjeado. E explica: “Esse tal ‘jeito’ vem do facto de eu vir de uma família de pescadores da faina maior e, também eu, ter andado na pesca do bacalhau”. Ora, dar voz a uma personagem de uma película portuguesa dos anos de 1940 tem, com certeza, as suas dificuldades técnicas. Mas quando se trata de interpretar um pescador do bacalhau “as coisas saem naturalmente” a Leopoldo Oliveira. Há alturas em que o guião se confunde com as memórias que ele próprio guarda das suas campanhas. Nesses momentos, deixa de fingir, deixa de representar. É como se estivesse a recordar o que viveu. “Só quem lá andou é que sabe dar valor”, assume.
“Por muitos relatos que se façam só quem viveu aquilo é que sabe”.
Para o intérprete da Gafanha da Nazaré, o mais importante de toda esta aventura é a possibilidade de “recuperar uma obra que é dos poucos filmes que existem sobre a pesca do bacalhau de antigamente” e que, apesar de ser uma obra de ficção, “consegue contar uma história e, ao mesmo tempo, mostrar aos espetadores como era a vida na pesca do bacalhau”.
Leopoldo Oliveira vai continuar a participar dobragem e não esconde o “entusiasmo por ver o resultado final”.
Este projeto partiu de uma ideia de Hugo Pequeno, do 23 Milhas, que desafiou a Orquestra Filarmónica Gafanhense não só a musicar a longa-metragem, como a criar um espetáculo ao vivo para o apresentar. Por se tratar de um empreendimento ambicioso, concordou-se em projetar a primeira metade do filme agora, na Milha e deixar a apresentação da obra completa para o Mar Film Festival, em abril de 2020.
Henrique Portovedo, maestro da Orquestra Filarmónica Gafanhense, já tinha feito bandas sonoras e sonoplastia para filmes, mas esta é a primeira experiência de recuperação histórica. Desse ponto de vista “este é um projeto muitíssimo importante porque reaviva uma memória coletiva ligada à faina, ao mar e às tradições desta gente”. Para além disso, refere, “há o fator artístico extra de transpor tudo para um espetáculo visionado”. É, na opinião do maestro, “um dois em um muito interessante”.
“Heróis do Mar”, de 1949, é o filme de estreia de Fernando Garcia enquanto realizador, mas o cineasta já tinha colaborado como assistente de realização em “O Pai Tirano”, “O Pátio das Cantigas” ou “Aniki Bóbó”, para além do seu trabalho como crítico cinematográfico no Diário da Manhã. Fernando Garcia faleceu em 2008, mas Ana Maria Garcia, sua filha, esteve em Ílhavo a convite do 23 Milhas para assistir à apresentação desta primeira parte do recuperado “Heróis do Mar”. “Não sei como agradecer este trabalho magnífico que honra e divulga a história de um povo e de um território”. Ana Maria Garcia saúda o “trabalho fantástico” e a “homenagem maravilhosa” que este projeto representa para a memória seu pai.