Há muito tempo, quando ainda era analfabeto e não conhecia o poder da racionalização enquanto ferramenta para construir uma imagem mental do mundo, levava-me, apenas, pela intuição e sensibilidade, interiorizando o mundo que me rodeava, e a mim mesmo, com a simplicidade e o movimento de um átomo.
Conhecia, ainda sem conhecimento, todos os meus sentidos e desafiava-os constantemente: levava tudo à boca para lhe sentir os sabores e as matérias (duras, moles, frias, quentes); punha o nariz onde não era chamado e, também, onde era chamado, para me inebriar com os odores à minha volta (canfora, almíscar, pútrido, floral, acre); tocava em todas as superfícies assimilando as texturas e, de olhos fechados, procurava adivinhar do que se tratava (liso, rugoso, macio, áspero); cravava os olhos no mundo, distinguindo cores, formas e volumes; e encostava os ouvidos à terra, procurando ouvir-lhe as entranhas.
Durante a maior parte do tempo da minha vida, foi assim que me apresentei como uma pessoa no planeta, e, mesmo depois de ter aprendido as suas formas racionais, ficaram-me muitos vestígios deste meu tempo – emoções, sentimentos, afetos, intuições, sensibilidade – que fui esquecendo, ao longo de biliões e biliões de dias que se sucederam uns a seguir aos outros, sem se sobreporem, a segunda antes da terça e o domingo depois de sábado.
Só há, mais ou menos, um segundo universal, aprendi as primeiras formas racionais de interiorizar o mundo e passei a assimilar o mundo com a complexidade das formas racionais que me ofuscam a intuição e a sensibilidade, em prol de uma vida civilizada e humanizada. Doravante, como um faminto insaciável, passei a guardar tudo na memória, transformando os sentidos em binários 0 e 1, e habituando-me a simplificar a complexidade (e a complexificar a simplicidade) com siglas, acrónimos, conceitos, teorias e ideologias.
Neste tempo, os dias não se sucedem uns aos outros, mas existe uma cronologia que organiza os nossos tempos de vida (infância, juventude, adultez, velhice) e as intuições e a sensibilidade dão lugar à programação, à robótica e à estratégia. Neste tempo, desconfio dos meus sentidos e reprimo os meus sentimentos, emoções e afetos, em função do uso de uma inteligência e de uma racionalização que me são estranhas.
Mas é, também, neste tempo, que conseguimos ter o prazer dos sentidos, como aquele que tive quando, numa tarde chuvosa de novembro, saí de casa, caminhando, para me dirigir à Casa da Cultura em Ílhavo e ouvir Quiné, um músico de Ílhavo com as suas músicas de Ílhavo (e do mundo), e regressar ao meu próprio íntimo, sentir cada contorno das minhas emoções, dos meus afetos e dos meus sentimentos… E, de repente, num escuro iluminado pelo som, começar a chorar todas as minhas memórias desse tempo de onde venho, enquanto ouvia, do meu lado, alguém que dizia, com o orgulho da pertença: eu assisti ao primeiro concerto do Quiné no Concurso “Petinga da Casa”.
À Milha – Festa da Música e dos Músicos de Ílhavo -, que se repita!