Devemos tentar variar os caminhos que usamos para nos deslocarmos. É uma boa forma de não viciar o olhar e de nos mantermos sempre atentos ao facto de as coisas nos aparecerem sempre com um determinado ponto de vista, que é nosso e carrega uma data de lixo e outras tralhas que fomos acumulando ao longo da vida. Felizmente, vivemos numa cidade de caminhos múltiplos, cheia de becos, de passagens improváveis e de caminhos secundários.
No passado fim-de-semana, sentados a uma mesa composta por conterrâneos e por não-conterrâneos (e não sei se consigo traçar a linha que os separa de uma forma assim tão clara), conversávamos sobre as nossas cidades, aquilo de que gostávamos, aquilo de que não gostávamos tanto. Notei, ao fim de algum tempo a pensar sobre isso, que quem vive em cidades maiores sente problemas e vantagens de uma forma mais distanciada. Os locais, os que se sentem autóctones de lugares pequenos, como o nosso, sentem coisas em relação a ele que são muito pessoais.
Enquanto um habitante do Porto ou de Lisboa fala do preço da habitação, pela negativa, ou da oferta cultural e comercial pela positiva, uma pessoa que viva em Ílhavo mas tenha uma relação mais distante – ou porque se mudou recentemente, ou porque tem os seus laços noutros lugares –, aponta factores como o sossego, a oferta cultural ou o preço da habitação, pela positiva, ou dificuldades na mobilidade ou, também, o sossego, pela negativa. Mas quando se chega aos locais, àqueles que nasceram, viveram, que têm a cidade na sua identidade, é uma explosão de subjectividade, de afectos, de desafectos. Fala-se de uma “identidade”, das raízes, de ser “o local onde tenho a minha família e amigos”; fala-se também das “mentalidades”, do atraso e, por outro lado, sempre com um certo tom de menorização, de um certo sentimento de que as coisas são um bocadinho mais pequenas do que no resto do mundo.
Os locais são um pouco como aqueles pais que passam a vida a maldizer os filhos, mas que se vão aos arames quando um professor ou um vizinho o faz. Basta alguém externo apontar falhas ao lugar de onde são, que a identidade e o orgulho disparam aos píncaros. O estar muito próximo de uma coisa acaba por fundir-nos nela e por retirar um pouco a perspectiva. Andarmos sempre no mesmo caminho automatiza-nos os passos e o olhar. Conversar é fazer vários caminhos diferentes e obriga-nos a ver as coisas com outra frescura.
Ninguém colocaria em causa o amor de um pai ou de uma mãe por um filho com quem passa a vida a ralhar por ter más notas ou por pôr os cotovelos na mesa. Falta-lhes a distância que o afecto e o envolvimento lhes impede de ter. Mas então, talvez o grande pecado de quem observa esta relação seja o de não ver esse afecto e de não o ter em conta quando pensa sobre ela.
Às tantas, perdendo-se muito tempo em deliberações sobre o provincianismo, sobre a dimensão, sobre a escala, sobre o que se diz ou se premeia lá fora (nessa entidade monolítica e amorfa que é o “lá fora”) alimenta-se pouco mais que uma snobeira pseudo-intelectual.
Alimentar-se-iam outras coisas, uma perspectiva mais rica sobre este espaço e para esta cidade, se olhássemos para o que se pode fazer com toda esta proximidade, com todo este envolvimento, com toda esta subjectividade dos locais para com o local que habitam.
Seria esse um valor que é social, económico e ecológico. O valor de se poder ir às compras a pé e saber o nome de quem nos vende os produtos, ou de ir à segurança social e saber o nome de quem nos está a atender, ou de ter sempre, a poucos minutos de nós, alguém que nos pode desenrascar de um problema. E uma entreajuda e uma proximidade que são capazes de gerar um ciclo de boa-vontade que nos fortalece enquanto indivíduos e enquanto cidade, e que são frutos simples de uma dimensão reduzida, gerível, envolvida.
É complicado, muitas vezes, olhar para um algo e ver o que já lá está. Às vezes, basta só mudar de caminhos.