Mais dia, menos dia, a empreitada de requalificação do Bairro dos Pescadores de Ílhavo, no âmbito do PARU (Plano de Ação de Regeneração Urbana), vai avançar. No entanto, para alguns moradores do bairro, que há muito reivindicam obras naquele espaço, uma empreitada de requalificação de pouco servirá se não deixar de existir o “intenso tráfego de camiões de elevada tonelagem” naquelas ruas. Estes veículos pesados atravessam os arruamentos do Bairro dos Pescadores para chegarem ao antigo pavilhão da CAAI – Cooperativa Agrícola de Aveiro e Ílhavo -, atualmente utilizado como entreposto de armazenamento de sal pela mesma empresa que mantém, há vários anos, um monte de sal ao ar livre na Gafanha da Nazaré.

Camiões obrigados a atravessar o bairro

Em dezembro de 1962, O ILHAVENSE noticiava a grande pompa da visita a Ílhavo do então presidente da República, Américo Tomás, para a inauguração do “conjunto de casas airosas” que constituíam o Bairro dos Pescadores, bem como do seu “majestoso” centro social. Por essa altura, já José Gomes Ribeiro, pescador e cozinheiro de bordo em navios da pesca do bacalhau, morava no Bairro dos Pescadores. “Vivia aqui com os meus pais, foi aqui que conheci a minha namorada, que me casei e que, há pouco tempo, a vi partir; os meus filhos também nasceram aqui”, conta José, cuja história pessoal se confunde com a história do bairro. Aos 73 anos, admite: “Sinto o Bairro dos Pescadores como um pedaço de mim próprio”.

Nos últimos anos, José Gomes Ribeiro tem dado voz à contestação de alguns moradores do Bairro dos Pescadores, não só no que concerne ao “estado de degradação e abandono” a que, no seu entender, aquele espaço tem estado sujeito, como ao “problema relativo ao armazém de sal” que opera naquela área.

A 3 de fevereiro de 2016, em reunião de câmara, uma comitiva de moradores encabeçada por José queixava-se da “circulação de camiões de muita tonelagem [para acesso ao armazém de sal] que criam buracos enormes nas ruas”. A’O ILHAVENSE, José acrescenta ainda que, na Rua dos Nautas, há muito que os moradores já só estacionam em cima do passeio. “Numa rua tão estreita, é a única forma de evitarem estragos nos seus automóveis à passagem de camiões de tão grandes dimensões”.

Apesar deste armazém não ter qualquer identificação, O ILHAVENSE sabe que o espaço é propriedade da SalTalQual, empresa com sede na Gafanha da Nazaré dedicada ao comércio de sal e parceira do Município de Ílhavo no âmbito do Festival do Bacalhau e da venda de alguns dos seus produtos na loja do Museu Marítimo. Contactada pel’O ILHAVENSE, fonte da SalTalQual explica que “o armazém de Ílhavo tem funcionado apenas como entreposto de apoio e só tem uma logística mais intensa de dois em dois meses, correspondente à descarga do navio”. No resto do tempo, garante, “o tráfego [de camiões no Bairro dos Pescadores] é muito residual”.

Voltando à tal reunião de câmara, em resposta ao contingente liderado por José Gomes Ribeiro, Fernando Caçoilo, presidente da Câmara Municipal de Ílhavo, dizia “ter consciência” da falta de intervenção naquela zona da cidade e assumia a intenção de o executivo avançar para a requalificação do Bairro dos Pescadores “tão rapidamente quanto possível”, sendo que o projeto integraria uma próxima candidatura a fundos comunitários de apoio específico a essas matérias. Mais afirmava o edil que, relativamente ao armazém de sal, e aquando da requalificação daquela zona, “o acesso far-se-á através da reconstrução da antiga estrada de acesso [Rua do Mar], ficando, assim, proibido o transporte de sal pelo interior do Bairro dos Pescadores”.

No que resta do que, em tempos, terão sido as cancelas de entrada para o recinto do dito armazém, ainda pode ler-se a sigla CAAI gravada nos pilares de pedra. A CAAI – Cooperativa Agrícola de Aveiro e Ílhavo -, criada em 1951, ter-se-á instalado naquele pavilhão na primeira década de atividade do Bairro dos Pescadores e por lá exercido negócio durante largos anos. A cooperativa viria a extinguir-se nos primeiros anos do novo século, passando toda a sua atividade e funcionários para a alçada da CALCOB – Cooperativa Agrícola dos Lavradores do Concelho de Oliveira do Bairro.

Como Caçoilo bem lembrava, na época em que a CAAI estava em funcionamento, a principal serventia àquele armazém fazia-se pela Rua do Mar. No entanto, a construção da via de cintura sul poente a Ílhavo, entre a rotunda da Malhada e as Lavegadas, veio alterar a lógica viária daquela zona. A Rua do Mar via o seu traçado original e ondulado interrompido pela nova variante e o armazém deixava, assim, de ter o único acesso que não obrigava a atravessar o Bairro dos Pescadores.

À data da inauguração da via de cintura, em setembro de 2005, isto não era um problema, uma vez que, com a extinção da CAAI, o armazém estava desocupado e inativo. Foi por isso, aliás, que não houve a preocupação de criar uma solução viária direta àquele equipamento, tal como foi feito, a poente, para a ESBAL.

O que é certo é que, alguns anos mais tarde, o armazém voltou a ter atividade. Primeiro, com um negócio de peixe; depois, como espaço para armazenamento de sal. E o acesso nunca chegou a ser reconstruído.

Sê-lo-á, muito em breve, assegura Fernando Caçoilo. A Câmara Municipal de Ílhavo vai investir mais de 623 mil euros no Bairro dos Pescadores, uma obra de regeneração urbana que permitirá a execução das redes de drenagem de águas pluviais e águas residuais, das redes para abastecimento de bocas incêndio, redes de gás e telecomunicações e que prevê ainda a reabertura da Rua do Mar com novo traçado e acesso ao armazém. A obra “foi adjudicada, já tem visto do Tribunal de Contas e estaleiro montado e arranca, garantidamente, neste mês de fevereiro”, afiança o presidente da câmara.

Quase quatro anos depois daquela reunião de câmara, a circulação dos camiões pelo interior do bairro “vai finalmente deixar de existir”.
Mas as reclamações não se ficam por aqui.

Acesso é bem-vindo, mas não resolve problema do sal

Já na tal reunião de câmara de 2016, José Gomes Ribeiro dava nota do alegado “fraco acondicionamento do sal, que faz com que o vento leve aquele produto para cima dos automóveis dos moradores, para as suas casas, pátios e logradouros”. “Não é raro verem-se montes de sal na estrada, mesmo ao lado dos nossos carros”, reforça, agora, José.

Mais tarde, a 5 de julho de 2018, o assunto voltaria à discussão em contexto de reunião de câmara, mas, desta vez, noutro prisma. Eduardo Conde, vereador eleito pelo Partido Socialista, quis saber para quando estava prevista a retirada do depósito de sal a “céu aberto” da empresa SalTalQual, na Gafanha da Nazaré, que, dizia, “colocava em causa a produtividade dos terrenos contíguos” e trazia “problemas acrescidos de degradação das frentes das habitações” próximas.

Ora, Marcos Ré, vice-presidente da câmara, que já na altura acompanhava o processo da SalTalQual e que presidia àquela reunião pelo facto de Fernando Caçoilo se encontrar em período de férias, informou que o negócio em causa permite a presença do monte de sal naquele local. No entanto, acrescentou, “a empresa e a Câmara Municipal têm trabalhado no sentido de resolver esta questão do depósito de sal”. Segundo Marcos Ré, a solução que estava a ser estudada consistia no armazenamento passar a ser feito exclusivamente em armazém fechado, passando a empresa a utilizar “o edifício da antiga Cooperativa Agrícola de Aveiro e Ílhavo, sito na zona do Bairro dos Pescadores, em Ílhavo”, cujo “projeto de requalificação para esse efeito” já havia sido aprovado pela câmara “com algumas condicionantes, nomeadamente a qualificação daquela zona”. O autarca alertava que, “as vias atualmente existentes não contemplam a circulação de camiões daquela dimensão e tonelagem”.

O que é certo é que, nestes anos, o armazém de Ílhavo não tem servido como alternativa ao monte de sal ar livre que a empresa mantém num pátio adjacente ao seu edifício-sede, entre a rua Passos Manuel e a rua da Seca, na Gafanha da Nazaré, mas sim como um complemento a este.

A SalTalQual é proprietária do armazém ilhavense há cerca de seis anos; o terreno onde o mesmo está implantado, adquiriu-o há dois. Fonte da empresa confirma que têm sido realizadas várias reuniões com a Câmara Municipal de Ílhavo no sentido de encontrar uma solução de compromisso para aquele espaço, não só no que respeita à criação de acessos viários adequados, como à renovação do conceito de atividade daquele armazém. Recentemente adquirida pelo grupo multinacional francês Salins – um dos maiores da europa no que respeita à produção e comercialização de sal – a SalTalQual tem um projeto maior para aquele armazém que não só permitira a “requalificação do pavilhão e do espaço envolvente”, como “contribuiria para a dignificação e valorização” de toda aquela zona. “A ideia era criar um polo interpretativo com uma forte componente pedagógica em torno da história e da tradição do sal em Ílhavo e Aveiro”, refere fonte da empresa, que, atualmente, já dá emprego a cerca de duas dezenas de pessoas na Gafanha da Nazaré.

Mas nem esta solução convence José Gomes Ribeiro que volta a destacar o “alto teor corrosivo do sal”, queixando-se do que aquela substância faz aos carros, às caixilharias e aos eletrodomésticos. Na opinião do morador, “estes serviços são próprios de zonas industriais, exatamente, para estarem deslocados das habitações”.

Fernando Caçoilo, por sua vez, prefere desdramatizar a questão – “Estamos a falar de sal, não é nenhuma matéria perigosa” -, esclarecendo que, sendo a atividade desenvolvida “à porta fechada”, não terá influência significativa na quantidade de sal no ar. O autarca reforça ainda que, “pela sua localização [próximo do esteiro da Malhada e do canal do Boco], o Bairro dos Pescadores é, naturalmente, uma zona exposta a ambientes mais salgados”.

Ao longo dos anos, tudo leva a crer que esta “guerra contra o sal” se tenha vindo a tornar uma luta de um homem só, mas José garante que, apesar de não quererem assumir posições públicas sobre o assunto, há vários moradores do bairro a partilhar das suas preocupações. “Estamos a pagar bem caro o facto de nunca termos constituído uma associação de moradores que nos representasse”, afirma José Gomes Ribeiro, para quem os habitantes do Bairro dos Pescadores são gente “humilde, pacífica e trabalhadora”, mas que prefere aguentar com as consequências de um problema do que lutar pela sua resolução”.

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