Acordei e vesti roupa de ir à rua. É importante, dizem, pela sanidade mental. Tem graça, penso, deviam ser bem instáveis da psique os pré-históricos que nem rua tinham para lhes ditar a roupa. As imagens de mocas indiciam isso mesmo, mas, de alguma forma, de mocada em mocada aqui viemos parar.
Entretanto adquirimos certas vaidades. Começámos a pôr maiúsculas em certas palavras, nomes nas ruas, etiquetas nas roupas, até nos esquecermos que foi de trambolhão em trambolhão pela escadaria da História (aí está ela) que aqui chegámos, refazendo-nos rapidamente e ajeitando a roupa a ver se ninguém reparava.
Eu próprio, mesmo confinado, assumo alguma dessa peneira, e desço a escada, não a da História – que se encontra, como as de alguns museus, com uma correntezinha a interditar a passagem, enquanto se resolvem umas questões do foro sanitário – mas a de casa, para tomar o pequeno-almoço.
Enquanto ligo a televisão para mais uma injeção de banalidades monstruosas, encho uma taça de leite com estrelitas. De marca branca, claro, que os tempos já contêm originalidade suficiente nesta rotina morna como o leite.
Uma coisa interessante aconteceu com as Estrelitas: a marca mudou-lhes a receita e agora as cópias sabem-me mais às originais do que as próprias. Mas talvez sigam a natureza das estrelas, que copiam, e tenham o seu próprio ciclo, substituindo-se umas às outras. Desde as originais, que os pré-históricos viam, ora quando olhavam para o céu ora quando levavam com valentes mocadas na cabeça, até estas que me nutrem as manhãs.
Nisto das cópias das cópias das cópias, ganha-se uma certa reverência ao original, enquanto ele segue o seu caminho sem fazer grande caso disso. O pivô conversa com um opinador que faz fé de que “isto vai tudo voltar ao normal”. E eu temo, porque não sei que normal é esse e o que inclui. Talvez devêssemos ter algumas cautelas com o que queremos copiar, nós que somos as estrelas mais estaladiças do universo. Os pré-históricos bem sentiam como elas lhes doíam.
Por isso, desligo a televisão. Vou tirar um café que decido não tomar na cozinha. Coloco algum açúcar na chávena e a chávena num pires – um pequeno gesto, ou uma pequena cópia, de civilização. Subo as escadas, de volta, com cuidado para não tropeçar, um pé em frente ao outro, e sento-me à varanda, num cuidadoso percurso que me leva mais tempo do que aquele que demoro a beber o café. Está um dia de sol e aproveito para ficar mais uns minutos a esticar-me: a cidade é bonita sem pessoas, mesmo sem pessoas.