AFONSO RÉ LAU

Nos últimos dias, António Conceição, artista plástico de 49 anos, pintou, num dos pilares do viaduto que dá acesso ao Cais Bacalhoeiro, na Gafanha da Nazaré, um mural que retrata o dia-a-dia nas antigas secas de bacalhau. O desafio de homenagear as mulheres que trabalhavam nas antigas secas partiu do empresário Leonardo Aires, da Frigoríficos da Ermida, empresa da Gafanha da Nazaré que se dedica à transformação e comercialização de bacalhau desfiado. O convite veio no seguimento de outra obra que António levara a cabo na fachada nascente do edifício-sede daquela empresa, mesmo ao lado do local onde surge, agora, este novo mural. 

António Conceição é natural de Mindelo, em Cabo Verde. Chegou a Portugal no início do novo milénio e, em 2005, licenciou-se em Belas Artes na Universidade do Porto. Desde aí, dedicou a sua vida à arte e, de uma forma muito especial, ao retrato. Já expôs em galerias e participou em várias mostras de arte, no entanto, nos últimos anos, é na arte urbana que tem apostado. A rua é a sua tela. 

No que concerne a este mural de homenagem às mulheres que trabalhavam nas antigas secas de bacalhau, há um ponto prévio que António faz questão de esclarecer: “Não fiz uma interpretação à luz de grande parte dos relatos que chegaram aos dias de hoje. Este é o meu olhar sobre o passado e é uma tentativa assumida de ‘fazer uma lavagem’ àquilo que parecia ser uma realidade muito triste, uma tentativa de corrigir essa noção de sofrimento e desgaste que nos transmitiram”. 

Segundo o raciocínio deste criador, “ao relatar tempos difíceis, o ser humano tem sempre tendência para choramingar e pintar cenários mais dramáticos do que a realidade”. “Mas imaginem estas mulheres em grupo. Era uma alegria fantástica! Era impossível andarem todas consternadas”, repara António. “Para levarem a vida que levavam, aquelas mulheres tinham de ter muita força. Mas essa não era uma força de sofrimento, mas sim coragem e ânimo”, acredita. 

Assim sendo, “as mulheres aqui retratadas transpiram energia, juventude e até alguma bizarria – umas parece que estão a brincar, outras mais concentradas no trabalho. Quis criar essa combinação expressiva entre elas”, conclui.

Este mural parece estar concluído. Ainda assim, a obra, no seu todo, ainda agora começou. Quando estiver terminada, aquelas paredes vão contar um pouco da história não só das trabalhadoras das secas, mas de várias profissões ligadas à pesca do bacalhau. “Nas faces dos outros pilares, vou também retratar as peixeiras, os pescadores, os oficiais…”, avança o artista. 

Ora, se o drama é inerente à condição humana, talvez a curiosidade também o seja. Queremos saber quando é que a obra estará concluída. Mas António defende-se com nota poética: “Uma pintura nunca está acabada”. Percebe-se a visão do artista quando explica que, “enquanto eu [o artista] estiver vivo, posso sempre regressar para corrigir algum aspeto, acrescentar um traço ou fazer um restauro”. Mais concretamente, não há data prevista para terminar, “é para se ir fazendo” e, mais importante, para se ir apreciando.

É que, ao recuperar a memória destas mulheres e do seu ofício, António está a retratar um objeto cultural e patrimonial profundamente ligado à história pessoal de muitas das pessoas que por ali passam diariamente. Esta proximidade afetiva com a comunidade faz com que a obra se eleve, adquira um simbolismo especial e estimule uma participação cívica curiosa. “As pessoas passam aqui e ficam a apreciar. Algumas dão o seu contributo, fazem os seus comentários, deixam dicas e partilham memórias. Há toda uma componente de identificação que é muito interessante”, comenta António. Além disso, “a primeira coisa que muitas [dessas pessoas] exclamam é ‘Que saudades!’. E isso é ótimo. É a prova que, apesar das dificuldades e da dureza daqueles tempos, o trabalho dava-lhes algum prazer”.

Já nos anos de 1990, António pintava murais ligados à pesca artesanal, em Cabo Verde. Todavia, esta é a primeira vez que trabalha o tema da faina maior. Para conceber estes retratos, António fez pesquisa no Museu Marítimo, visitou antigas secas, mas também teve em conta a comunidade, as pessoas, os herdeiros diretos desta cultura e tradição. No fim, já não tem dúvidas, o imaginário da pesca do bacalhau “é fascinante”.

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