Aquela magana tem ceifado a longa vida dos últimos decanos da Faina Maior. Os que restam sentem-se alinhados – confessam, de onde a onde.
Da grande família dos Ramalheira, de propensão marítima, filho e neto de capitães da Marinha Mercante, bisneto de um mestre de cabotagem e trineto de um pescador, todos por linha paterna, Vitorino Paulo Silva Ramalheira, nasceu em Ílhavo, em 29 de Junho de 1929, filho de João Pereira Ramalheira (o Vitorino) e de Ema Silva Ramalheira.
Depois dos estudos normais em Ílhavo e em Aveiro, matriculou-se na Escola Náutica de Lisboa, onde tirou o curso complementar de pilotagem, que acabou em 1948, onde voltou mais tarde, pelos anos sessenta, para obter a carta de capitão de Marinha Mercante.
Simpático, afável, culto, de conversa agradável, um grande senhor, muitas vezes nos encontrámos, em francos e produtivos diálogos, depois da sua aposentação e nas suas muitas idas ao Museu Marítimo de Ílhavo.
Com 19 anos de idade, em 1948, embarcou de terceiro piloto no navio “Horta”, da Companhia Carregadores Açoreana, até 1951, com viagens na linha da América do Norte, entre Hamburgo e Nova Iorque.
Mas, o seu rumo do mar estava traçado. Nesse mesmo ano, fez uma viagem no navio-hospital “Gil Eannes”, cujo capitão era seu pai, João Pereira Ramalheira, um experiente oficial. O pai tinha-o levado como 3º piloto, nessa campanha, para lhe tirar o gosto pelo mar, fazendo-lhe ver as dificuldades, a dureza da vida, o afastamento da família, mas o efeito surtiu no contrário – enfeitiçou-se pela pesca do bacalhau.
Vitorino pretendia casar-se, precisava de dinheiro para a mobília e, no bacalhau, ganhava-se melhor – conseguia ganhar em seis meses, quarenta contos, o que era bom.
Visto que tinha o casamento em vista, depois das viagens de piloto, em 1952 e 53, no “Elizabeth” e no “Capitão João Vilarinho”, casou em Vagos com Maria Angelina Rocha de Oliveira.
Entre 1954 e 1959, continuou a sua actividade de pesca no bacalhau, como imediato, no navio com motor “Condestável”. Mas, o verdadeiro fascínio surgiria, entre 1960 e 65, quando ao serviço de um armador do Porto, passou a comandar, pela primeira vez o lugre com motor “Aviz”, que lhe deu as maiores alegrias, mas também a mais dolorosa viagem de que tem memória, quando o perdeu, por incêndio, nas Virgin Rocks, ao largo da Terra Nova. Terá sido a sua causa, um curto-circuito nos geradores, por uma sobrecarga de gambiarras acesas.
Outro episódio que merece ser lembrado, relativo ao “Aviz” tem a ver com as grandes cheias do Douro, em Janeiro de 1962, em que muitos navios se afundaram, mas em que o “Aviz” se safou.
O tempo vai passando, Vitorino fala com ternura da emoção que era “andar num navio à procura de peixe” e em 1966, salta, de saco às costas, para capitão do belo cisne branco que era o lugre “Santa Maria Manuela”. Um documentário canadiano, da autoria de Hector Lemieux, imortalizou Vitorino Ramalheira – “The White Ship”, uma das “jóias da coroa” dos documentários sobre a pesca à linha do bacalhau.
No navio, de olhar atento, perscrutando o mar e controlando os seus homens, surge-nos, nos seus 37 anos, com a sua boina basca, um autêntico galã hollywoodesco.
Grande mágoa foi que, nessa campanha, tenha falecido, por lesões internas provenientes de uma forte pancada, um homem de Vila Praia de Âncora, Dionísio Esteves, que jaz num cemitério de St. John’s. Estes sofridos momentos ainda tornam o filme mais emocionante.
Depois de mais duas campanhas no “Santa Maria Manuela” entrecortadas por uma no “Capitão João Vilarinho”, Vitorino Ramalheira, em 1970, deixou a pesca e ainda voltou à carreira com que, inicialmente sonhara – a Marinha Mercante –, as, por pouco tempo. Já não fazia sentido, tinha os filhos casados e a mulher, sozinha, em casa. Estava na hora de voltar e assim o fez, em 1983, entregando-se à leitura, ao arranjo do quintal, e cooperando com o Museu Marítimo, onde se guarda a memória desses tempos gloriosos.
Deixou-nos, em viagem sem retorno, em 8 de Maio de 2021, com 91 anos. Parece que a vida tem coincidências e tem. Ontem, dia 7, o “Santa Maria Manuela” entrou a barra de Aveiro, destinado a uma reparação na Navalria. Terá sido uma despedida?
Por Ana Maria Lopes