Experimentalista da guitarra, seja elétrica ou acústica, Filho da Mãe passou por Ílhavo durante o verão de 2021 para gravar parte do seu novo álbum “Terra Dormente”, lançado neste mês de abril. “O Ilhavense” falou com o músico sobre esta sua nova empreitada.
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“Terra Dormente” é o sexto álbum de Filho da Mãe. Tendo-se em conta o período de distanciamento social e confinamento devido à pandemia, podemos ver neste título uma certa relação com a dormência e a infertilidade em muitos setores da vida, especialmente a cultural, durante estes últimos dois anos?
Na verdade, a pandemia e os confinamentos/desconfinamentos acabaram por “cair em cima” do disco. Não era bem o meu objetivo que o disco tivesse relação com isso. Já tinha delineado de uma maneira abstrata aquilo que serviria de inspiração – quase um pretexto – para compor. A música instrumental é obviamente muito moldável a qualquer situação e a várias “narrativas” diferentes, mas costumo usar uma ideia de base para servir de linha condutora à medida que vou compondo e gravando até chegar à fase de mistura. Esta ideia, vaga, entre o “sonho” e a “realidade”, dois planos quase sobrepostos que se confundem, veio de algo muito próximo com uma carga emocional forte que achei muito visual, por um lado, e que se aplicava bem nas guitarras. Quando chegam os confinamentos, a sensação meio surreal e que em tudo parecia impossível, esta aparente pausa no mundo (até no futebol?!) colou-se bem à ideia inicial e, claro, acabou por se impor no disco. Ninguém conseguiu escapar completamente disso, conhecemos todos a história.
O álbum foi parcialmente gravado em Ílhavo. Porquê a escolha deste local?
Só o facto de haver espaços que se dedicam ao apoio da criação artística propriamente dita, haja ou não concertos associados, faz toda a diferença. Estamos habituados a produtos finais, mas nunca dedicamos muito tempo a pensar no tempo (e não só) investido no processo criativo. É mais que um estímulo, é uma necessidade. A capela [da Biblioteca Municipal] foi-nos proposta como um sítio em que poderíamos trabalhar durante o dia e a Fábrica das Ideias [na Gafanha da Nazaré] para um ambiente mais noturno. Tentámos encontrar, no meio desses ambientes, os dois lados do disco – um mais luminoso e etéreo e outro mais negro e cru -, que acabam por se confundir. A capela serviu bem o propósito de uma captação mais clássica da guitarra, aproveitando o eco natural do espaço. O disco também passa por Lisboa, com a ajuda da CTL, no Music Box e Fábrica de Pão (no Hub Criativo), e o resultado é uma mistura de todos estes momentos de gravação.
Hoje em dia, as tecnologias são muitas vezes portáteis, o que facilita a captação de som praticamente em qualquer lugar. Sabendo-se que um estúdio equipado pode gerar conforto, com tudo no sítio e à mão, como foi a experiência de gravar música naquela capela? Correspondeu às expetativas?
Já tenho alguma experiência de gravar em capelas! Foi a minha terceira capela. Quase que parece uma experiência religiosa, embora não tenha nada a ver com isso… Mas há de facto algo mágico numa capela, algo que vai do conforto a uma sensação diferente, mais fria. Procuramos essencialmente a acústica, mas há um aspeto mais solene que também afeta as músicas. Foi uma ótima experiência de gravação, embora a tenhamos levado a ponto um pouco exaustivo, por vezes.
Há toda uma orgânica e uma atitude ‘faz-tu-mesmo’ na sonoridade de Filho da Mãe. Tendo-se em conta o local onde o álbum foi gravado, sentes que o fator orgânico da música se elevou a um novo patamar?
Não tenho ideia que o fator orgânico da música se tenha alterado. Tudo isto é bastante orgânico, mesmo quando trocamos a volta às músicas depois de as termos gravado, adicionando sons ou overdubs. Aquilo que poderá ter mudado, é que o disco foi gravado em contínuo, em espaços muito diferentes ao longo de algum tempo. Nos discos anteriores, o processo era mais imediato, mais uma fotografia do momento (sempre bastante intuitivo e orgânico e próximo do espaço em que foi gravado). Mas há algo que os une sempre, sendo uma dessas características o facto de nunca ter um plano muito definido à partida – o disco vai-se revelando. Neste processo, o Hugo Valverde (produtor do disco) foi muito importante – esteve comigo em todo os momentos de gravação e acabou por conseguir “destapar” o disco ao longo de dois anos e três espaços distintos. Surpreendi-me com a coerência do disco.
Pensando nas idiossincrasias deste projeto, achas que o teu trabalho se dirige a um público específico?
Pensar nisso é uma coisa, o que se sente é outra. Gosto de fazer música para toda a gente, mas não sou ingénuo, sei que a audiência para uma coisa deste tipo não será a mais generalista, mas isso não muda nada. Não dirijo nada a grupos específicos (a não ser que o queira fazer de um modo pessoal), acabo sempre por me dirigir a quem gosta de música, espero. Há sempre um momento da vida em que as coisas encaixam mesmo quando não é o “nosso” tipo de coisa. Sou muito aberto na música que ouço, não sou de géneros específicos, nunca faria música com esse propósito. Embora perceba perfeitamente que se encaixe melhor num sítio do que noutro.
Olhando para trás, para além da cerca de uma década com o experimentalismo da guitarra a ser o principal foco, há também o punk e o hardcore de If Lucy Fell. Como vês o desenrolar da tua carreira?
Quando olho para trás espanto-me, às vezes. Mas o que sinto quase sempre é que uma coisa levou a outra e nos momentos em que estava a tocar só pensei nesses momentos e não no que vinha a seguir. Não tenho jeito para o futuro, até porque ele acaba sempre por se desenrolar de um modo que não esperava e estou farto de me enganar. Uma das coisas que disse há 20 anos é que nunca tocaria a solo. Enfim…
Há planos para concertos na região de Aveiro?
Há sim, mas ainda estão no segredo dos Deuses e outras secretárias.
“Terra Dormente” foi lançado a 8 de abril de 2022 pela editora Omnichord.
(Entrevista por Diogo Ferreira)