No Natal passado, convocando os fantasmas necessários, os Beatles lançaram o melhor dos seus temas póstumos, produzido a partir de uma cassete deixada por John Lennon com o título “Now and Then” – uma expressão que se presta à dupla leitura de “agora e naquele tempo” e “de tempos a tempos” ou “de vez em quando”.
O enunciado apela a esse exercício tão inevitável como traiçoeiro quando colocamos dois tempos lado a lado, o da comparação entre o agora e o outrora. Um exercício a que esta quadra se presta bastante, e que lhe vai adicionando, à medida que a idade e os fantasmas se acumulam, uma melancolia que vamos aprendendo a apreciar, como uma boa aguardente.
Mas o seu segundo sentido, “de vez em quando”, remete-nos para o dia-a-dia, para um quotidiano de cujo automatismo, volta e meia, despertamos. Como o de um almoço solitário que digeria, há uns meses, ao balcão de um agitado snack-bar no Porto, onde os cafés e as diárias voam ao compasso da cidade. Estava envolvido com uma sandes-à-pressa quando reparei no dono a olhar para o telemóvel enquanto tirava dois cafés que entregou a duas clientes: “estes dois são por minha conta, que acabo de ser avô”, disse, enquanto recebia os parabéns e prosseguia a curto tempo à mecânica do seu ganha-pão. Agora recordo como então levantei a cabeça e verifiquei a discreta felicidade daquele homem – ocasionalmente a vida vai-nos recordando que estamos mesmo aqui, uns com os outros, neste lugar, e que isto é mesmo a sério.
É por isso feliz a ideia de organizar este ritual do Natal em torno dos nossos lugares de todos os dias. Refiro-me à casa, sim, mas não só. Por exemplo, o velho ritual de ir beber um portinho ao antigo café Expresso do Oriente, que prossegue no seu sucessor na calçada Carlos Paião, traz a um lugar de todos os dias essa excecional celebração de estarmos aqui todos os dias. Traz-nos, a nós, esse momento de reparar, de nos espantamos com o banal, e de comparar o agora com o outrora e, na medida do possível, medir o que se passou entretanto.
E sei que por todo lado esses encontros se fazem, e julgo que em sabê-lo está já a grande festa que me cabe aqui fazer. Muito se pode censurar a excessos vários da quadra, mas nunca a este excesso de encontro humano, de nos querermos bem e aqui connosco.
Por isso, a todos desejo festas felizes, neste último número d’O Ilhavense em 2024, agradecendo podermos estar aqui, neste quadrado de papel, a encontrar-nos quinzenalmente por mais um ano.