A poesia é para comer, dirigia-se a Natália Correia a uns tais de “sub-alimentados do espírito”. Mas o espírito do tempo não está para alimentação dessa espécie e os sub-alimentados assim continuam. Alguns.
Procurando fazer passar o tempo, leio uma belíssima entrevista ao Nuno Nolasco em que este cruza a figura da Penélope, que esperou Ulisses, com a das mulheres ilhavenses que esperavam os seus maridos do alto mar (e não esqueçamos também as que os esperavam do ultramar, acrescento). Não deixo de cruzar essas esperas com a minha, aqui sentado nesta sala, à espera.
Mas afastemo-nos de mim, por agora, e rumemos aos anos 50 do século passado. À Espera de Godot estreava-se perante a culta plateia do Théâtre Babylone, em Paris, revelando-se indecifrável à grande maioria da sala. Passados poucos anos, no estabelecimento prisional de San Quentin, na California, uma plateia de reclusos vergava-se em comoção perante o mesmo texto. Os reclusos percebiam exactamente a espera de Vladimir e Estragon por um “Godot” que não chega. Muitas das nossas avós também.
Usamos estas coisas para fazer passar o tempo e para, de alguma forma, fazer o tempo passear. Ou para passear no tempo. Para perceber que talvez não sejamos assim tão diferentes das nossas avós ou dos condenados de San Quentin.
Alimentamo-nos todos das mesmas coisas porque somos todos feitos das mesmas coisas. Essencialmente, de tempo, de fome e de espera. Disso fazemos cultura, que nos traduz e nos congrega na cronologia desse espírito. Quando esquecemos essa igualdade onde nos cruzamos, abraçamos a barbárie.
Claro que hoje temos um feed de Facebook. Podemos fazer passar o tempo dessa forma, a percorrer a colecção de enormidades proferidas em horas pós-eleitorais; a fraqueza de um certo espírito do tempo, que desconfia da gaguez do gago e da pobreza do pobre, que pendura a boçalidade com orgulho na lapela. Verificar que alguns dos actores desse nanismo de espírito até partilham o código postal connosco. Hoje podemos esquecer-nos de comer, sub-alimentados que somos. Podemos até esquecer-nos de não alimentar certos monstros.
Mas temos o dever de não o fazer e de falar apenas e só ao que é, em nós, humano e decente. De procurar no que somos, nas nossas histórias, na nossa linguagem, aquilo que nos faz esperar uns pelos outros e pela própria espera. De alimentar o espírito: os nossos reclusos e às nossas avós. Ao resto, o tempo há de levar.