Jorge Tadeu Morgado trabalha no Parlamento Europeu, em Bruxelas, mas nas últimas semanas tem estado por casa. Está em regime de teletrabalho, “apenas com idas muito esporádicas ao edifício do Parlamento”. Uma dessas saídas extraordinárias aconteceu no dia em que Jorge falou com O ILHAVENSE – 26 de março – devido à realização da sessão plenária na qual os eurodeputados viriam a aprovar as primeiras medidas da União Europeia com vista a ajudar as pessoas e as empresas a enfrentar as consequências da pandemia do novo coronavírus. “A grande maioria dos eurodeputados esteve a seguir a sessão por videoconferência e os votos foram efetuados via e-mail, através de um procedimento específico criado para este efeito”, explica Jorge Tadeu. A dez minutos do Parlamento trabalha Mário Campolargo, diretor-geral adjunto do departamento de informática da Comissão Europeia. Mário também se encontra em teletrabalho, consciente de que “estar em casa é a melhor maneira de vencermos este desafio global”.
De acordo com estes ilhavenses, o panorama na Bélgica “não é muito diferente da situação vivida nas maiores cidades portuguesas”, sendo que, nesta altura, aquele país tem “quatro vezes mais casos fatais” do que Portugal. “A maioria da população está em isolamento, confinada às suas habitações e, sempre que possível, em teletrabalho. Vê-se muito pouca gente na rua, muito pouca circulação de automóveis e já quase não se ouvem aviões”, relata Jorge Tadeu. O mesmo narra Mário que tem notado um “silêncio ensurdecedor nas ruas”.
“Para quem vive em Bruxelas, a dois, com as filhas, o neto e a restante família em Portugal, a dura sensação de estarmos separados só é compensada pela certeza de sabermos que essa é a melhor forma de amanhã nos podermos abraçar”, explica Mário. De igual forma, Jorge, que também vive na capital belga com a esposa e as duas filhas (a mais velha, de 13 anos, está a ter aulas por videoconferência) –, não esconde “apreensão”, “dúvida” e “receio”, relativamente à situação atual, bem como às “terríveis consequências sociais e económicas que desta pandemia advirão”. Nas palavras deste ilhavense, a Europa está a viver uma “dupla crise” (de saúde pública e socioeconómica), que “ninguém poderia prever” e que atingiu o continente de uma forma “trágica e avassaladora”.
Impacto do confinamento, das artes à ciência
Talvez ainda nenhum país no mundo tenha sido tão fustigado por esta pandemia como a Itália. Sessenta milhões de italianos, estão, desde 9 de março, obrigados a permanecer em casa, só podendo sair por “motivos comprovados de saúde ou trabalho”. Com o desenrolar do surto, o governo de Giuseppe Conte mandou encerrar toda a atividade produtiva não-essencial, estendeu a quarentena, pelo menos, até ao dia 3 de abril e já informou que o estado de emergência vai manter-se até ao final do mês de julho (ainda que, aos poucos, se a evolução da conjuntura o justificar, possam ser levantadas algumas restrições). Medidas extremas para tentar travar o progresso do vírus que já matou mais de 10 mil pessoas em território italiano.
Maria Fradinho, estudante de Artes Plásticas, reside, desde fevereiro, em Áquila. Esta cidade italiana “no meio das montanhas da região”, a cerca de uma hora e meia de Roma, conta já com mais de uma centena de casos confirmados de Covid-19, de acordo com o Corriere della Sera.
A jovem ilhavense está em Itália ao abrigo do Erasmus+, um mecanismo comunitário que apoia e facilita a mobilidade de estudantes de vários países em parceria com diversas instituições de ensino superior. Quando despontou a crise pandémica na europa, “cerca de 3250 estudantes” portugueses estavam ausentes do país no âmbito deste programa. “Só em instituições de ensino superior italianas, contam-se 432 estudantes”, nota um despacho publicado em Diário da República a 19 de março. É o caso de Maria, que viajou para Áquila na expectativa de fazer um semestre na Academia de Belas Artes.
Quando chegou a Itália, nos primeiros dias de fevereiro, Maria não se apercebeu imediatamente da situação que o país começava a atravessar. Instalou-se na nova casa e, antes de começar as aulas, pôde ainda receber e guiar os pais numa visita a Roma e viajar, sozinha, durante uma semana, à Grécia. “Na volta, no aeroporto de Ciampino, em Roma, já fui sujeita a testes de temperatura por infravermelhos e foi aí que percebi que a situação estava a ficar grave”, lembra Maria.
Atualmente, a jovem vive em quarentena obrigatória. “Para sairmos à rua precisamos de nos fazer acompanhar de um documento com informações sobre o local onde residimos e, no caso de pessoas estrangeiras, a razão para estarmos a morar em Itália. Se não tivermos um propósito válido para sair de casa – como, por exemplo, ir ao supermercado ou à farmácia – estamos sujeitos a multas”, esclarece.
Aquando da sua candidatura ao programa Erasmus, por não dominar a língua italiana, Maria apostou em aulas mais práticas. Uma escolha acertada, não fosse o facto inesperado de o país ter entrado num regime de confinamento que, entre tantas outras coisas, impede os estudantes de frequentar a academia. “[Na disciplina de] Pintura, ainda conseguimos desenvolver algum trabalho em casa, mas, por exemplo, [na disciplina de] Escultura é mais complicado, já que precisamos de trabalhar com material tóxico que não convém manipular em casa”, explica Maria.
No que ao seu trabalho diz respeito, o dia-a-dia de Rafael Baieta, estudante de doutoramento e investigador na área da Geoquímica Ambiental na Universidade Carolina, em Praga, “flutua entre o trabalho de escritório e o trabalho de laboratório”. E se o primeiro pode ser feito a partir de casa – a única ferramenta necessária é um computador com acesso à internet e alguns programas específicos fornecidos pela universidade -, o mesmo não se pode dizer da componente laboratorial. Afinal, explica Baieta, o trabalho de laboratório “tem de ser efetuado em ambiente estéril e com acesso a químicos, materiais e máquinas que ninguém tem em casa”. “Infelizmente, estava numa fase de colheita de dados em laboratório e devido a esta crise tive de procurar outro foco”, lamenta o investigador ilhavense que reconhece que a atual situação “não será sustentável” durante muito tempo.
Rafael Baieta mora, há cerca de dois anos e meio, na capital checa. Foi por vontade própria que, a 11 de março, deu início a um período de isolamento domiciliário. “Fi-lo tanto pelo receio de ser contagiado, como pela possibilidade de eu próprio contagiar alguém mais vulnerável sem me aperceber”, conta Rafael. Dois dias depois, a 13 de março, o Governo checo declarava estado de emergência e preparava-se para fechar as fronteiras.
Quando percebeu que teria de passar pelo menos um mês em quarentena num país que, fora das condições de trabalho que lhe proporciona, não lhe diz muito e que não estaria junto da família num momento de maior necessidade, Rafael Baieta experimentou um “momento de pânico”. “Senti-me claustrofóbico e imediatamente procurei voos para voltar [a Portugal] e estar com a minha família”. Entretanto, falou com a mãe, com os avós e os tios e compreendeu que, mesmo que voltasse a Ílhavo, não poderia visitá-los sem correr o risco de os infetar. Além disso, se regressasse, com as fronteiras fechadas, tão cedo não poderia voltar à República Checa. “Custa muito estar longe, ainda mais numa altura como esta”, mas hoje, mais calmo, Baieta admite que ficar em Praga foi “uma boa decisão”.
Um episódio semelhante passou-se com Maria Fradinho. A jovem ainda ponderou regressar, mas percebendo que Portugal está “umas semanas atrasado” relativamente à Itália no que respeita ao desenvolvimento da pandemia e que as previsões indicam que o pico só venha a acontecer em Portugal depois de já ter acontecido em Itália, preferiu ficar em Áquila.
Uma crise próxima, vivida à distância
A opção de permanecer nos países de acolhimento não significa que estes ilhavenses não continuem a acompanhar a evolução da pandemia em Portugal. Numa primeira fase, Rafael Baieta admite ter ficado “triste” por ver “Portugal atrasado na tomada de decisões”. Porém, houve algo que surpreendeu o estudante de doutoramento: “O próprio povo [português] tomou a iniciativa de ficar em casa, de cuidar de si e dos seus, de pedir para que se fechassem as escolas e as universidades e se cancelassem eventos. Depois de, à distância, ter visto praias portuguesas cheias de gente e inacreditáveis ‘Corona Party’s, devo dizer que esta consciência comunitária me encheu de orgulho”.
A principal inquietação de Rafael são os seus avós que, na casa dos oitenta anos, integram um dos grupos de maior risco. Quanto a Maria, preocupa-a o facto de os pais estarem a trabalhar, “principalmente a minha mãe que trabalha no atendimento ao público, numa farmácia”.
Também a comunidade de emigrantes ilhavenses em New Bedford, a cerca de uma hora a sul de Boston, nos Estados Unidos da América, tem acompanhado o desenvolvimento da pandemia em Portugal e está algo apreensiva. “Quem tem aí [em Ílhavo] família, ‘derrete’ os telefones com contactos diários com os familiares”, diz Luís Nunes, ilhavense.
Nos últimos dias, os Estados Unidos ultrapassaram a China, a Itália e a Espanha e são o país com maior número de casos confirmados de coronavírus. Luís Nunes relata como tem sido o cenário nos últimos dias: “restaurantes, repartições públicas e escolas fechados e pessoas em casa; é possível levar o cão à rua, mas nada de abusar [na duração do passeio]; as grandes superfícies estão abertas ao público, mas com stocks diminuídos para evitar o açambarcamento; a população mantém-se calma”.
Segundo o The Boston Globe, só em Massachusetts, estado ao qual pertence a cidade de New Bedford, à hora de fecho desta edição, já tinham sido confirmados mais de 5 mil casos Covid-19 positivo.
Quando o isolamento aproxima
A pandemia do novo coronavírus é uma ameaça à Humanidade e ao modo de vida dos seres humanos. Uma experiência angustiante, geradora de grande ansiedade, medo e stress e que, nem que seja por respeito aos que mais sofrem e àqueles que, todos os dias, estão no terreno para combater esse sofrimento, não deve ser desvalorizada ou romantizada.
Ainda assim, movimentos de apoio comunitário, voluntários dispostos a ajudar vizinhos ou conterrâneos e ações de reconhecimento e aplauso do trabalho esforçado dos profissionais de saúde são evidências sociais de esperança e afeto não devem ser ignoradas.
Segundo Luís Nunes, por exemplo, nos Estados Unidos, grupos de jovens têm-se disponibilizado para “apoiar idosos, fazer compras ou prestar outros serviços”. “Apesar do momento difícil que o mundo vive, nunca a solidariedade foi tão pura e bonita como agora”, afirma o emigrante de Ílhavo.
Também Maria Fradinho, prática e otimista, gosta de realçar o melhor lado desta tragédia: “Ninguém, no nosso século, viveu uma pandemia como esta. É uma situação tão extraordinária que, em termos políticos e administrativos os países não estavam precavidos. Acredito que, a partir de agora, vamos ficar mais bem preparados para eventuais crises de saúde no futuro”. Mário Campolargo, por seu turno, deseja “que a sociedade saia reforçada deste episódio, que percebamos quanto dependemos uns dos outros e redescubramos o valor da solidariedade”.
Momentos de crise acabam por unir as pessoas, mesmo que estas não possam conviver presencialmente. É irónico que neste novo mundo em que é pedido isolamento, tantas pessoas tenham encontrado forma de estarem socialmente ativas. Com as ferramentas tecnológicas à disposição, já não é o facto de uma pessoa estar confinada a quatro paredes que faz com que não possa socializar. É certo que não há a presença física, a força de um cumprimento ou o calor de um abraço. Mas, ainda que de forma virtual, pode haver encontro.
“Nunca me senti tão próximo daqueles de quem sinto falta”, reconhece Rafael Baieta que, nas últimas semanas, tem conversado diariamente com familiares e amigos em Portugal e noutros países. “A universalidade deste vírus faz com que todos estejamos a passar pelo mesmo, independentemente do local onde estamos”. Dos tradicionais telefonemas às videochamadas, tudo serve para “ajudar a aproximar quem está fisicamente longe, mesmo que seja através de um ecrã”, concorda Jorge Tadeu Morgado. “Sentimos que somos hoje elementos ativos de uma comunidade digital à escala planetária, unida pelos mesmos sentimentos de vizinhança”, acrescenta Mário Campolargo.
Maria Fradinho fala com os pais, com a avó e com as tias, no mínimo, uma vez por dia. Contactos fundamentais para tranquilizar aqueles que, à distância, se preocupam com o seu bem-estar e segurança. “A atitude dela deixa-nos mais descansados”, assegura a mãe, Sandra Ribeiro. “Se a Maria mostrasse medo ou preocupação, ficaríamos muito mais ansiosos. Mas ela está bem. Diz sempre para não nos preocuparmos. E nós sabemos que ela é responsável e que sabe tomar conta dela”.
Há dias, fruto da espontaneidade que o caracteriza, João Pedro Fradinho, pai de Maria, afixou uma bandeira nacional – peça com elevado valor sentimental por ter pertencido ao navio-escola onde embarcara – no muro da sua casa e pintou, à trincha, na bandeira e no muro, a mensagem: “Maria, amamos-te. Ílhavo – Áquila (Itália)”. Quando Sandra se apercebeu do empreendimento do marido terá comentado: “Não posso deixar-te cinco minutos sozinho…”, mas também para ela foi importante a materialização daquela mensagem de amor e conforto. João Pedro e Sandra fotografaram-se junto à bandeira e ao muro e partilharam o registo com a filha, prometendo que assim vai ficar aquele espaço até ela regressar de Itália, para que quem passe pela urbanização Plenicoop, em Ílhavo, saiba que naquela casa moram uns pais que sentem um “orgulho enorme” na filha que têm.