Mais uma vez as festas em honra da Senhora da Saúde animaram a praia da Costa Nova.
A Missa, a procissão, enfim toda a celebração religiosa associou-se ao encontro de amigos e familiares que, mantendo a tradição, aproveitaram esta data para se reunirem, festejando também a amizade. E, em brinde comum, os céus voltaram a abrir-se às luzes estreladas do fogo de artifício, durante as noites da festa.
Talvez até finais do século passado, esta data, o último fim de semana de setembro, marcava o fim do verão. O fechar de janelas e portas, o lavar dos soalhos e o cobrir dos móveis num até “pró ano”. A Costa Nova desertava, empurrando para outras vidas os habituais veraneantes. Com o desvanecimento do bronzeado das peles, perdiam-se também muitos dos amores de verão, terminava a fugaz época dos encontros no café entre os de cá e os que só vinham por esta altura. E as sardinhadas e as pescarias. E o desfilar na marginal ao som da voz da radio Faneca. E houve tempos em que havia bailes e se ia ao cinema embrulhados em cobertores porque o tempo na Costa Nova não brincava. E pessoas que hoje já cá não estão, não tinham cabelos brancos, e eram jovens e acreditavam que a vida assim não teria fim.
Não havia a Igreja que hoje há, mas apenas uma capelinha que lhe fica ao lado, construída em 1890. E mesmo essa conta história anterior.
De acordo com investigação de Senos da Fonseca, “quando a companha do Luís da Bernarda aterrou, ali no norte da então extensa língua de areia deserta, logo foi (como era preceito) erguida uma tosca ‘albergaria’ de engrudados barrotes, telhado rôto, contudo suficiente para breve oração e prece de protecção ao devoto S. Pedro, ‘zelador universal’ do povoléu piscatório na arriscada labuta em procura de parco sustento.
De como esse “oratório improvisado, pouco mais do que um simples altar para reza apressada, antes da companha se lançar às vagas” se tornou na linda capelinha dedicada à Senhora da Saúde também Senos da Fonseca conta a história:
“Terá acontecido na Vila, no dealbar do Séc. XIX, forte destabilização na família religiosa ilhavense, reflexo do cisma social provocado pela afirmação de um novo arquétipo social, surgido, quando fazendo jus ao seu ADN, o “ílho” largou as amarras que o prendiam às acanhadas águas do litoral, e partiu, altieiro, em procura de lugares longínquos espalhados em todos os mares do mundo de que ouvia falar. E os reflexos dessa catarse, provocaria mudanças imparáveis com reflexos profundos na interacção comunitária das gentes.
O orago S. Pedro, desde tempos imemoriais, vinha merecendo anualmente (29 de Junho) assinalada festa de arromba, justificadora de regresso (ou simples e fugaz visita) dos migrantes do litoral embarcados na diáspora do ‘ilho’. Era a festa do reencontro”, com procissão, trajos de gala, as ruas e andores cobertos de flores, enquanto os céus se quebravam ao som de foguetes.
E foi então, pouco a pouco que o Ílhavo até então pescador, arroteador só das águas do mar litoral, se torna altieiro, procurando encontrar a sorte no mar longínquo onde parecia não haver balizas nem distâncias, nem horizontes limitadores. Apenas sonhos…
Os poderes de S. Pedro parecem não ser suficiente para se estenderem a paragens, agora cada vez mais longínquas. Logo se admitiu eleger, louvar e venerar, condignamente, um outro protector mais universal, capaz de alongar o seu cuidado a todos os pontos por onde sulcassem os mareantes. Assim, em data não muito precisa, mas que podemos arriscar ter acontecido por volta de 1840, a festa de S Pedro muda para festa do ‘Senhor dos Navegantes’. Na procissão que percorre, a partir daí, as ruas juncadas da Vila, o andor que era costume levar o ‘barquinho da companha’, é então substituído pelo imponente veleiro ‘O Navegante’ e com ele o protetor ‘Senhor Jesus dos Navegantes’.
Do alto da sua cruz onde é mostrado à multidão, não deixa de vigiar, protector, o veleiro altieiro que, velas enfunadas, parece marear, seguro da providência divina que o livrará das traições do mar.
‘S. Pedro’ é remetido à tolhida capelinha de colmo, edificada nos areais da Costa Nova. Logo nasce a ideia de passar atestado de padroeira à ‘Srª da Saúde’, incluindo em sua honra e louvor, data aprazada no programa dos festejos lagunares.
A data livre no cardápio religioso lagunar, é a do último fim de semana de cada Setembro. Data de louvor e fervor religioso que se mantém até aos dias de hoje.
Rapidamente urge a necessidade de dar instalação condigna a padroeira de carácter universal e, em 1890, surgirá a bonita capelinha postada no areal extenso da língua de areia que separava o povoado, do mar”.
Publicado no jornal O Ilhavense de N.º1310 de 1 de outubro de 2022