David Calão

Uma coisa que acontece sempre que algo leva os ilhavenses à rua é que eles conversam uns com os outros. E, quando conversam, geralmente queixam-se. O livro de reclamações é extenso, mas quase sempre tem a ver com um sentimento de imobilismo, de catatonia, de uma terra onde “não se passa nada”. Aliás, ouço isto há demasiados anos: desde que atingi a adolescência e toda a gente queria ir fazer coisas para outras paragens, ouço, como justificação, este “aqui não se passa nada”.

Essas pessoas, que sempre sentiram que precisavam de ir para lugares onde se passam coisas, acabaram, como inevitavelmente acontece, por conhecer pessoas nesses lugares, criar lá os seus laços sociais e afetivos, e muitas vezes contribuir para que lá se passassem coisas que cá não se passam. Essas pessoas, em certa medida, têm razão.

Hoje, passo a vida a encontrar pessoas que são de cá, e vivem cá, mas pouco vivem por cá. Fazem a sua vida toda lá e só cá vêm para dormir. Perguntam-me muitas vezes como é que eu me safo sem carro, porque logicamente uma pessoa que viva cá passa muito tempo lá. E perguntam-me, com algum espanto, “mas tu sais em Ílhavo?”. Encontro essas pessoas lá, evidentemente, onde elas estão.

Depois, invariavelmente, cruzo-me com as pessoas de cá e que vivem cá, que se queixam de como o centro da cidade é parado, de como não se veem pessoas, pessoas jovens, e de como não há a chamada “dinâmica”.

Acontece que a “dinâmica” acontece quando há pessoas que se encontram, que conversam, que se divertem, que se cultivam, que partilham anseios e projetos. Os laços criam-se quando as pessoas podem estar na rua a interagir umas com as outras. E esta interação que cria ideias, que cria projetos, que criam dinâmica, surge, mais vezes do que as pessoas imaginam, em todas as cidades do mundo, do convívio noturno.

A juventude desta cidade é muitas vezes – e justamente, diga-se – criticada pela sua falta de mobilização associativa. Mas como iriam os jovens associar-se se eles nem sequer se encontram e nem sequer se veem uns aos outros a não ser em meia-dúzia de vezes por ano em que o distrito conflui para o centro de Ílhavo? Como quer esta comunidade ter vida se não se dá aquilo que é, em tantas dimensões, elementar a ela: o encontro?

Não é assim tão difícil perceber porquê. A prática de vida noturna no centro da cidade é ligeiramente tolerada, mas muito desincentivada. Promovem-se atividades que atraem centenas de pessoas, de lá e de cá, ao centro da cidade, e mandamo-las embora, com aparato policial digno de um recolher obrigatório, às duas da manhã, fomentando a atividade dos táxis que hão de levar essas pessoas para outros locais.

A atividade noturna ilhavense não existe porque não se permite que exista, e essa é uma das grandes razões pelas quais não tem existido uma juventude socialmente ativa – ou, simplesmente, uma juventude. E isso alimenta um ciclo vicioso que torna as perspetivas de futuro desta cidade muito difíceis.

E isso preocupa-me, porque sou de cá, vivo cá e vivo mesmo cá. E, como eu, não há assim tantos, mas há alguns. E cabe a esses quebrar o ciclo vicioso, nesta e em muitas outras coisas. Se em tempos nos ficámos pelo “quem está mal muda-se” e mudámo-nos – para lá, para Aveiro, para Coimbra, para o Porto ou para Lisboa, ou para “lás” ainda mais longínquos – hoje sabemos que não é “quem”, mas “o que está mal” que se muda.

Mudemos então.

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