Atrasado para entregar uma crónica, googlo notícias de Ílhavo e sou confrontado com um caso de putrefação piscícola, digno de um episódio que envolvesse a banca de Ordralfabetix e uma boa rixa das patenteadas por Uderzo e Goscinny numa qualquer aventura de Asterix e Obelix.

Mas seria podre ou maturado? Defeito ou feitio? É esta a dúvida que nos deve assaltar, amiúde, quando olhamos para as coisas. Pelo menos, se quisermos ser justos. Por vezes somos nós quem não está a ver bem o filme.

Em alguma restauração muito em voga, a putrefação torna-se técnica gastronómica, exponenciando o preço de certos bifes, assim como, de resto, no processo de cura do nosso mui ilhavense fiel amigo, que já nos estaremos a preparar para adquirir para a consoada que aí vem.

São fenómenos naturais, da química e de outras ciências que não domino. Artífices das palavras, sofistas mal intencionados, poderiam usar isto para nos embaralhar as ideias. Afinal, Poderão tentar fazer-nos crer que é tudo igual.

Aqui entra a velha distinção entre conhecimento e sabedoria: que qualquer um pode saber que o tomate é um fruto, mas só um tolo colocaria tomate numa salada de frutas. Isso, ou um génio, capaz de confeccionar uma boa – e original – salada de frutas que leve tomate. Afinal, a sabedoria não é saber “como se faz” mas “como se pode fazer”.

Procuro sempre vender o peixe fresco, mas às vezes sou apanhado na curva. Numa cidade como esta, onde a cada esquina um amigo nos comunica o que achou da última crónica, temos que ter um cuidado acrescido. Felizmente, não há autoridade para a saúde intelectual que nos apreenda estas prosas, mas há sempre um punho fechado a planear um encontro com a face barbuda de um cronista caixa de óculos, o que é substancialmente pior.

Foi isto, o que me arranjaram, quando me concederam o privilégio de escrever para este histórico jornal, aniversariante no passado dia vinte de novembro. Uma quinzenal inquietação, que é o compromisso de pensar na vida de uma cidade sobre a qual nunca pensei muito, como não se pensa sobre o que é natural ou habitual em nós, como a respiração, ou a inadequação do tomate enquanto constituinte de uma salada de frutas.

Tenho a agradecer esse privilégio e, por maioria de razão, a todo o empreendimento que foi trazer este jornal até 2019 com o querer que lhe reconheço. Tenho a agradecer-lhe os centímetros quadrados em que se arrisca a ser a banca do peixe de qualidade duvidosa deste Ordralfabetix que vos escreve. E a parabenizá-lo pelo muito que ainda há de ser, porque sei que há de ser, movido pela inquietação dos que o fazem, com uma vontade desmesurada de o levar, não aos cem anos de passado, mas aos incontáveis que estão por vir. Essa coisa é que é linda.

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