Para além de uma miúda de quatro anos, os artistas lá em casa são mais. Mais variados, mais peludos e mais insubordinados. Quatro gatos, três cães e dois peixes. E uma Maria Francisca que, somada à restante tropa, torna cada dia um dia diferente. Nem sempre melhor, mas diferente. Os animais já faziam parte da casa quando ela nasceu em outubro de 2015. E o pai, muitos anos antes, passava manhãs, tardes, fins de semana e feriados à caça de pintassilgos, bicos-de-lacre, verdilhões e pintarroxos. Para os enclausurar, em gaiolas, viveiros e outras prisões feitos à medida deles. Bastava sair de casa em direção à ria. Os terrenos eram vastos. As aves muitas e a vontade, alicerçada e reforçada pela companhia de outros como eu, ainda maior seria. Os sustos, foram alguns. Hoje, mais de vinte anos depois, não sei o que diria – e faria – à Maria Francisca se a visse em semelhantes preparos.

Vem este assunto a propósito de um bico-de-lacre. Para quem não conhece, um bico-de-lacre é um passarinho imensamente bonito, pequeno, cinzento com o bico vermelho, sendo vermelho também parte do peito e um rasgado risco da mesma cor junto aos olhos. Em liberdade, gostam de viver em canaviais, e multiplicam-se com alguma facilidade. O seu canto – se assim se pode chamar – passa por um simples “titititititititi”. Esta semana, um juvenil, talvez a empreender o seu primeiro voo, bateu com estrondo numa das janelas lá de casa. O tempo passou a correr. Antes de o salvar, passou pela boca de dois cães. Felizmente, só tentaram saber qual o sabor das suas penas.

Não deixei que fizessem mais do que isso. E depois de o ter colocado num terreno para que voasse, acabei por pegar novamente nele, colocá-lo numa caixa e deixá-lo ao quente, essa noite, em casa. Não sem antes, a Maria Francisca o ter salvado duas vezes. Numa deles, o Matias já brincava com a caixa e por pouco não lhe retirou a tampa. Na outra, o Riscas decidiu fazer igual e pior. A caixa já rebolava debaixo da mesa de jantar. Depois de quase ter sido refeição de cão, por um triz não foi ceia de gato.

No dia seguinte, vivo e animado, foi deixado, por mim e pela Maria Francisca, num parque natural da ilha de São Miguel. No Pinhal da Paz, ficou a salvo. Depois de saltar da caixa, o “titititititititi” voltou a ecoar. Subiu a um ramo e depois a outro. Todos ficaram felizes, a começar por mim, que salvei uma vida. A verdade, é que noutros tempos fiz o contrário, e esta boa ação não me deve redimir. A mim, ao Joel, ao Nélson, ao Filipe e a outros que comigo passavam manhãs de frio, à espera que algum entrasse na palma, para comer leitugas, alpiste ou simplesmente parar no ramo que lá estava para os enganar. Ainda o orvalho não escorria e o frio era mais do que gelado.

A amizade também se forjava ali, junto à ria, com a Costa Nova como pano de fundo, quando tínhamos de correr, porque a polícia florestal aparecia. Quando ficávamos sem gaiolas e sem os pássaros que lá tínhamos. Quando as armadilhas eram apreendidas e chorávamos até casa. E agora quando, tantos anos depois, nos lembramos do mal que fizemos quando fazemos o bem. Uma vez. Salvar uma vida pequenina. Um bico-de-lacre. Assim se começa uma oportuna expiação.

O jornal que tão bem me acolhe nas suas páginas faz anos. Noventa e oito anos. Parabéns a quem teve a coragem de fazer dele o que é hoje, na pessoa da diretora Maria José Santana. Parabéns ao José Sacramento por ter feito tanto por ele, até lhe faltarem as forças. Parabéns a Ílhavo por ter “O Ilhavense”. Como tão bem escreveu António Gedeão, “o mundo pula e avança”. E assim continuará a vida. E “O Ilhavense”.

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