Os anos têm, decretou-se, cinquenta e duas semanas: cinquenta e uma mais uma. A última semana do ano não é bem uma semana e não é bem do ano. É uma espécie de hiato do tempo, que podemos usar para aproveitar os saldos, para ler e para ver os filmes que nos foram escapando pelos meses.

Pendurados nessas cruzetas que são os calendários, os anos novos são como as camisolas em saldo: perfeitamente iguais, de tamanhos normalizados, sem história. Quando começamos a usá-los é que se vão tornando nossos, vão ganhando as nossas formas, mais ou menos anafadas, os nossos descuidos ou os nossos cuidados, as cargas de água que apanhamos. E ao fim de alguns dias, já ninguém tem uma camisola igual à nossa, apesar de algures na Ásia se terem fabricado tantas.

Visto daqui, 2020 é um conjunto de 366 dias – um bónus de bissextualidade – absolutamente em branco e por preencher (ainda que pelos nossos corpos cheios de açúcar e espirituosos consumidos em 2019). São números vazios, como os números sempre são, para enchermos de simbolismos, de memórias e de coisas menos descritíveis.

Fartei-me de matutar, estes dias, numa revisão de 2019 para verter neste quadrado que me cabe. Mas quem estaria interessado num exercício de tal forma umbiguista?

O protagonista de um conto de Julio Cortázar inspirado na vida de Charlie Parker, O Perseguidor, descreve um facto de um banal absurdo: numa viagem de metro de um minuto e meio, ocorreu-lhe uma memória que lhe leva, pelo menos, quinze minutos a contar. Como podem caber quinze minutos em um minuto e meio? E quantas viagens de metro se fizeram em 2019 e como as poderia eu condensar numa crónica sem insultar o leitor?

Comprei uma camisola nos saldos porque as que tinha já estavam gastas. Acho isso mais relevante do que o facto de irmos virar mais um ano. A camisola aquece-me enquanto o ano novo só me vai baralhar o preenchimento de datas em documentos. Espero que o ano novo me traga mais camisolas e mais música.

E, por isso, por mim, vou começar já a esticar as malhas desses dias, com os seus minutos dilatados por peças de Charlie Parker ou repentinas invasões da memória. Sabendo que iremos enchê-los de resoluções, de promessas e de falhanço, como fazemos sempre. É normal, é inevitável. Mas as revisões e as resoluções são demasiado idiossincráticas, demasiado pueris, para interessar. Só o correr do ano é interessante, como o sangue a correr nas veias. Só o quotidiano importa na vida e só a vida importa no quotidiano.

Tudo o resto é tempo perdido.

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