Em todos os discursos políticos, todos os projectos culturais ou associativos, todos os conceitos e estratégias de comunicação pontifica, e bem, uma palavra mágica: comunidade. É esse o alfa e o ómega das conversas sobre media, cultura, política, o triângulo das bermudas de todo o devir contemporâneo, tão “sistémico” e tão “em rede”.

Apetece dizer que “a comunidade não morreu”, mas surge-me a voz desse grande da canção alternativa americana, o David Berman dos Silver Jews, a dizer que «o punk rock morreu quando o primeiro miúdo disse “o punk não morreu! O punk não morreu!”», e retenho-me.
Nada precisa de ser tão invocado e tão exaltado se não estiver, pelo menos, em estado muito débil. E dá que pensar: porque se fala tanto de uma coisa que se vê tão pouco? Ou que se procura ver em tantas coisas, de forma tão encenada e tão pouco perene?

Seria necessário falar do que faz as comunidades, concretamente. Mesmo partindo desse mantra conservador da “família como base”, da sua estabilidade e da sua reprodução, surgem questões incómodas como a de se perceber que comunidade é esta e que condições materiais (perdoem-me algum materialismo dialético) existem para que se constitua enquanto tal, enquanto “comunidade”. Que tempo passam juntos, os seus membros? Que espaço comum ocupam? O espaço das 10 horas de trabalho, meia hora ou mais de viagem para cada lado, outro tanto para compras, outro tanto para o chegar a casa e tratar do que há a tratar?

E partindo daí, passamos ao espaço público, à participação cívica, associativa, cultural, política. Para quem falamos quando incitamos a comunidade a envolver-se? A uma população sem espaço para viver na sua própria casa quanto mais na rua (e lembremos o Ruy Belo, quando dizia que «sem casas não haveria ruas»…), para quem o local de trabalho é, cada vez mais, o foco de toda a sua existência (mesmo quando coincide com a casa, entre fraldas e Skype)?

Não existe comunidade, ou isso que pretendem que seja “a comunidade”, sem espaço para o ócio, sem espaço para o encontro e sem espaço para o pensamento. E esse espaço é, também, tempo. Oito horas para trabalhar, oito horas para viver, oito horas para dormir – quantos de nós se podem dar a este “luxo”? Quando procurarem o cidadão exemplar que se envolve e participa, talvez seja bom procurarem-no no emprego, onde estará a ser um trabalhador exemplar a tempo inteiro.

Por isso, por essa inexistência dessa entidade utópica, tão desejada, a inventamos tantas vezes, em tantos lugares, em tantas manifestações que muito pouco fazem para além da reprodução do passado, de folclore, tentando simular o que imaginamos ter sido, um dia, essa tal de comunidade. Confundindo esse lugar comum com um punhado de lugares comuns. Talvez por ser o possível, com o tempo que temos.

Em dias bons, voltamos a esse mantra: a comunidade não morreu. E não morreu, como o punk. Está apenas a dormir porque está muito cansada.

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