Somos recebidos na sede da Tulha, nas traseiras da capela da Gafanha D’Aquém, pelo Rafael Vaz e pela Liliana Pião, respetivamente presidente e vice-presidente da direção desta semicentenária associação. Para início de conversa, somos convidados a fazer um tour pelos vários espaços do edifício, construído em várias fases ao longo dos últimos 49 anos. A uma grande sala de convívio, seguem-se os espaços dedicados ao ensino da música, aos trabalhos manuais, às celebrações do dia da criança, às extensas reuniões dos órgãos sociais sobre as quais haveremos de ouvir falar e até a aulas de ginástica para os mais seniores. Muita desta atividade esteve suspensa este ano, por desventura da pandemia, mas faz-se o que se pode – haveremos de falar sobre isso também. Enquanto nos mostra a última execução desta obra, concluída há cerca de vinte anos, o Rafael conta-nos «na altura disseram-nos que o fácil estava feito [construir], difícil seria manter». Foi precisamente sobre isso que viemos falar.

De um órgão a uma organização
Um pormenor que não passa despercebido é o velho órgão que nos aparece logo à entrada. «Estava em muito mau estado e nos nossos 45 anos mandámos arranjar a madeira para que pudesse ser relembrado. Afinal, foi por causa dele que se começou isto tudo», conta-nos com entusiasmo. Foi da junção dos esforços de vários jovens da Gafanha d’Aquém para adquirir este instrumento, para a capela, através da organização de festas para angariar dinheiro, que surgiu aquilo que viria a ser A Tulha, uma organização com mais de 350 associados e com uma marca indelével na vida da sua comunidade.

A formalização foi determinante: «Aquilo que marca a estrutura hoje conhecida é o facto de se ter entendido, a determinada altura, organizar-se legalmente o grupo de jovens enquanto associação. É isso que o mantém até hoje: provavelmente, se não fosse por isso, o grupo ter-se-ia desvanecido ao longo do tempo – o facto de ter que haver órgãos sociais, de se criarem ligações à autarquia e outras instituições…». Por outro lado, a existência de um ponto de encontro foi também fundamental: «A sede foi feita por partes, mas desde o início se achou importante haver um ponto de onde a malta se pudesse encontrar».

Hoje, esta sede abre diariamente, acolhendo jovens em várias ocupações como as aulas de música, e envolve centenas de pessoas ao longo do ano nas suas várias atividades. «acabámos por construir, não propositadamente, um caminho de relevo na comunidade», conclui Rafael Vaz.

Uma juventude em marcha
A Tulha é, no município de Ílhavo, a única associação com o estatuto de associação juvenil reconhecido pelo IPDJ (Instituto Português do Desporto e da Juventude). Este estatuto obriga a que 75% dos sócios e dos órgãos sociais sejam compostos por jovens abaixo dos 30 anos de idade: «na direção somos nove, apenas dois podem ter mais de 30 anos».
Isto traz vantagens financeiras, mas não só: «em termos financeiros, permite-nos ter uma relação com o IPDJ e obter apoios. Em termos de dinâmica, está mais que visto, ao longo da história, que o facto de nos obrigarmos a isso e de, a cada ato eleitoral, preenchermos os órgãos sociais com malta mais nova, é fundamental. Foi assim que tanto eu como a Liliana acabámos por entrar na Tulha – no início não tomávamos decisões de relevo, claro, mas sempre que havia uma atividade nós estávamos cá e por aí se começa esta aprendizagem.

Estes processos de “recrutamento” ocorrem em dois momentos chave, conta-nos a Liliana: «as atividades onde mais recrutamos pessoas novas são as Marchas e o Festival do Bacalhau: as pessoas voluntariam-se para participar e nós vamos vendo quais são os mais interessados».

«Por outro lado, temos sempre o cuidado de integrar os jovens nos órgãos sociais antes de ingressarem no ensino superior» – complementa Rafael. «se nós não os trazemos verdadeiramente para aqui, com responsabilidade, eles vão para o Porto, para Lisboa, e rapidamente perdem este apego à Tulha e à terra». Forma-se, deste modo, uma relação afetiva, mesmo que à distância, com o lugar: «nós funcionamos muito com os WhatsApps, com as reuniões online. Temos malta que está em Lisboa, em Évora, mas nunca sentimos que estamos assim tão longe porque criámos essa rotina de comunicação – se nós hoje comprarmos um balde do lixo para aqui para a sede, eles sabem na hora, partilhamos tudo. A presença é muito próxima».

Esta relação acaba por transcender os órgãos sociais, conta-nos ainda: «há pessoas que saem da Gafanha, mas acabam por voltar de forma esporádica porque há coisas que elas gostam realmente de fazer na sua terra. Quando fazemos aqui o São Martinho, que consiste essencialmente em fazer uma fogueira com agulhas, ali fora, assar castanhas, “farruscar” a cara com carvão e beber jeropiga, recebemos pessoas que já não vivem cá, mas gostam de vir cá sentir isto, que é algo que não sentem noutros lugares, onde vivem. Há um sentimento de pertença que conseguimos criar e as pessoas, quando vêm à Gafanha d’Aquém fazem questão de vir à Tulha».

Tempos sem igual exigem medidas originais. Fotocópias, por exemplo.
2020 foi, para todos, um ano diferente. Para a Tulha também: «Ainda conseguimos fazer algumas atividades porque começamos logo em janeiro. As últimas foram o dia da mulher e o carnaval» até que foi decretado o estado de emergência: «tivemos para aí cinco dias em que isto estava tudo muito confuso, em que só pensávamos em nós e na nossa segurança, mas depois começámos a falar entre nós – “temos de fazer alguma coisa”».
«Nós temos sempre um ponto de ordem na forma como organizamos as atividades, pensamos sempre: as pessoas para quem vamos fazer isto têm dinheiro? Podem fazer isto?», explicava-nos uns minutos antes Rafael acerca da definição do plano de atividades. Durante a pandemia, a Tulha criou um serviço de impressão e entrega de material de apoio ao “tele-ensino”. «O facto de termos pessoas tão jovens na nossa equipa…às vezes dos jovens surgem as ideias mais frescas» – reflete Rafael Vaz – «começámos a tentar perceber que papel é que nós podíamos ter no meio disto tudo e surgiu então a ideia de imprimir as fichas escolares para as ir entregar a casa dos alunos, para a qual tivemos sempre o apoio do nosso funcionário com quem não quisemos quebrar o vínculo e cujo posto de trabalho lutamos por manter».

«Até às oito da noite de cada dia, as pessoas enviavam-nos um e-mail com o material de que precisavam, uma morada e um contacto telefónico. No dia seguinte íamos entregar. O serviço era gratuito porque considerámos que assim deveria ser, que deveria ser o nosso contributo para a comunidade num momento difícil».

O desafio revelou-se mais exigente que o antecipado – «não pensámos bem ao fazê-lo para o município inteiro: é muita gente, é um município muito grande. De repente, começámos a ter entregas todos os dias, da Barra a Vale d’Ílhavo». Mas foi também um processo que colocou o grupo de jovens em contacto com realidades particularmente difíceis. «tivemos de tudo…professores que nos pediam materiais que depois iam entregar a casa dos alunos, professores que nos indicavam alunos que não dispunham de meios informáticos. Encontrámos pais que não tinham computador ou sequer telemóvel para enviar as fichas aos professores para serem corrigidas. O agrupamento de escolas chegou a pedir-nos para fazermos a digitalização e enviar para os professores».

Foram quase 260 entregas ao longo de 10 semanas: «Acabou por alimentar muito a nossa vida. Este período ainda apanhou o dia da criança, que é uma data muito importante para a Tulha. Enviámos uma mensagem para as crianças num envelope com um marcador de livro. Muito raramente contactámos com elas diretamente, mas acabámos por estabelecer uma relação muito interessante por e-mail, por mensagens. Houve pessoas para quem isto foi muito importante».

2021, um ano para vingar 2020
A pandemia trouxe também alguns amargos. No dia 4 de agosto, a Tulha anunciou o adiamento do Festival da Canção Vida, uma das suas principais marcas, para 2021. Esta seria a sua vigésima edição, mas as condições exigidas pelo momento não permitiriam a realização do evento: «tínhamos garantido os apoios financeiros, mas quando reunimos com a equipa técnica do 23 Milhas e começámos a perceber o que era necessário garantir a nível de bastidores com as novas regras, percebemos que não seria viável – teríamos que limitar o festival a seis canções, com um máximo de duas pessoas em palco, e prescindir do artista convidado, dadas as necessidades de se garantir um circuito separado para cada equipa e a não partilha de camarins. Seria subtrair demasiado ao festival, ainda por cima no seu vigésimo aniversário. Assim, faremos a vigésima edição do Festival no quinquagésimo aniversário da Tulha, em 2021».

Além disto, o cancelamento do Festival do Bacalhau teve um impacto orçamental significativo a que se somou uma redução no apoio ordinário pela autarquia: «nós vivemos com três apoios financeiros fundamentais: o do IPDJ, o da CMI e o da Junta de Freguesia de São Salvador. Estas entidades são, também, responsáveis pelo que a Tulha consegue ser hoje. Este ano tivemos uma redução, apesar de nos anos anteriores termos vindo sempre a conseguir um crescimento no apoio autárquico, uma vez que a câmara reconhece o nosso trabalho. Claro que, a isto, soma-se a quebra que é a não existência do Festival do Bacalhau, que é o que normalmente nos financia a estrutura, a sede, os recursos humanos – os restantes apoios financiam as atividades e outros investimentos. Nós não estávamos habituados a gerir a Tulha sem esta receita [Festival do Bacalhau] que nunca é inferior a dez mil euros e, ao pé disto, a redução no apoio da CMI em mil euros não é muito significativa, nem é isso que põe em causa a estabilidade da Tulha, mas tudo junto tem um impacto grande. Esperamos no próximo ano voltar aos valores de 2019», diz-nos Rafael Vaz.

Quase meio século: uma escola.
Em outubro de 2019, a Tulha recebeu, fruto de um contrato de comodato com a CMI, o usufruto das instalações da antiga escola primária da Gafanha d’Aquém que permite um maior espaço de manobra. «A nossa sede é grande – é um facto – mas para as atividades que realizamos, nomeadamente a logística que implicam o Festival do Bacalhau e as marchas, já nos oferecia algumas limitações».

O local já era usado para ensaios e será agora repositório de todo o material relativo às marchas, aproveitando a oportunidade para criar um espaço museológico com todas as roupas «de forma a podermos mostrar, a quem nos visita, esta nossa história». Adicionalmente, o espaço servirá como oficina para a produção de todo esse material – os arcos, as roupas, os adereços. Será também o espaço de apoio à logística do Festival do Bacalhau, «que comporta a utilização de muito material e equipamentos volumosos». Transferindo estes elementos para o novo espaço, a Tulha conseguirá manter o dia-a-dia da sede com menos constrangimentos.
A escola é partilhada com a Aquém Renasce e com o Grupo Desportivo da Gafanha d’Aquém. «ficámos com a parte que mais nos interessava, que é a parte antiga, com duas salas e o antigo ginásio».

O espaço já foi visitado, no dia do seu aniversário, 12 de agosto, pelo Secretário de Estado da Juventude, que participou numa pequena cerimónia, a possível nas condições catuais – «as pessoas às vezes perguntam como é que conseguimos trazer estas pessoas aqui à Tulha. Normalmente, e neste caso também, basta enviar um e-mail, um telefonema…».

A Tulha é feita um pouco disto, desta juvenilidade, de um certo atrevimento que só a juventude e à juventude se permite, mas é também de um cuidado com as pessoas: «O associativismo é sempre muito difícil porque depende da capacidade de juntar pessoas, de as chamar para o que queremos fazer. Mas depois, fazendo isso, é uma bola de neve», diz Rafael.
«Não é uma ciência: temos que saber o que fazemos para a comunidade, se é o que a comunidade quer. Depois, tem que haver renovação». E nesta renovação é que está, muitas vezes a dificuldade – «não podemos dizer que os jovens não estão disponíveis para liderar associações se não trabalharmos uma relação com eles. O processo aqui é este: as pessoas entram na Tulha ao participar nas atividades, depois começam a ajudar-nos na sua produção e depois vamos começando a chamá-las para os órgãos sociais».

«Depende muito de como se vive dentro da associação» – continua Rafael – «se eu estivesse aqui a tomar decisões sozinho, ninguém se envolvia. Podemos estar a discutir a cor de um boné para oferecer no dia da criança que todos os dirigentes participam e são ouvidos».

Liliana confirma – «nas nossas reuniões toda a gente participa e toda a gente dá a sua opinião, independentemente do seu cargo, da sua idade, do seu nível de maturidade. Isso é muito importante para nós».

O associativismo vive tempos difíceis, reconhecem, mas ambos acreditam que pode tratar-se de uma fase, «assim como já tivemos aqui na Tulha fases piores». Mas depende das pessoas que estão à frente das organizações, concluem. «Depende muito da ligação com a comunidade» – acrescenta Liliana – «nós sabemos que podemos sempre contar com a comunidade da Gafanha d’Aquém quando precisamos».

Um ouvido atento à comunidade, uma ligação forte e constante à juventude e uma estrutura bem alicerçada parecem ser, portanto, as bases que vão sendo o motor do Grupo de Jovens A Tulha. «É um legado muito grande», mas não se demitem de levar para a frente o testemunho recebido de 49 anos de percurso. Porque, já se sabe: «o difícil é manter».

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