Foto: Alice Sardo

Na edição de 15 de março de 2020, ‘O Ilhavense’ destacava a meritória ação praticada por famílias Ilhavenses que tinham proporcionado a crianças de Chernobyl, condições de vida, como Sol, mar e alimentação mais equilibrada que não encontravam na sua terra natal. Era um mês de férias que podia significar mais anos de vida para aquelas crianças, vítimas inocentes de uma catástrofe nuclear na qual não tinham a menor responsabilidade.

O projeto Verão Azul, que então lhes permitiu isso, era apoiado pela Liberty Seguros que, em dezembro de 2019, decidiu abandoná-lo. Foram inúmeras as dificuldades que surgiram, pois era necessário custear várias despesas, como viagens e seguros, porém as famílias não desistiram e foram conseguindo parcerias de forma a que as crianças não perdessem a oportunidade de uma melhor condição de vida.

A pandemia e a invasão da Ucrânia pela Rússia, trouxeram novos dados, criaram mais obstáculos.

São três as famílias que, em Ilhavo, acolhem crianças residentes em zonas situadas muito perto de Chernobyl.
Alice Sardo e Pedro Viçoso costumavam receber Kateryna. Uma menina que á data tinha oito anos e que sofria de problemas respiratórios relacionados com as irradiações provenientes do desastre daquela central nuclear. O ar, o sol, o mar desta região ilhavense, fizeram com que os problemas de saúde se reduzissem consideravelmente. Em 2019 o programa acabou. Eram 35 meninos que vinham para Portugal ao abrigo desse projeto. Perante esta nova situação, as famílias que os recebiam desistiram, exceto as três de Ílhavo, Alice, M., Lurdes Vieira, e uma de Ovar. Procuraram arranjar novos apoios, pois era preciso pagar viagens e seguros já que a estadia era suportada por eles. Entretanto souberam da ‘Es Per Tu’, uma associação, que, em Espanha, continua a trazer crianças ucranianas e que, no natal passado trouxeram as de Ílhavo.

Em fevereiro deste ano veio a guerra. A Ucrânia foi invadida pela Rússia. As pessoas foram obrigadas a alterar as suas rotinas, os seus projetos, e Alice e Pedro encontraram mais uma razão para retirarem Kateryna do inferno em que se estava a tornar aquele país, oferecendo-se para receber a menina e a mãe, assim que conseguiram entrar em contato.
Assim como M., que, por razões pessoais prefere não ser identificada nesta reportagem, e que cuidou de dois meninos ucranianos durante o tempo em que o projeto ‘Verão Azul’ ainda se encontrava em funcionamento.

O jovem Roman, que vem para casa de M. em Ílhavo, desde 2014, passou o natal de 2021 na sua casa de acolhimento ilhavense, regressando a 15 de janeiro. Dia 24 de fevereiro começou a invasão russa à Ucrânia e para M. “foi um acontecimento extremamente difícil para nós, porque os meninos estavam lá, mas nós não sabíamos nada deles”.
Alice também conta que esteve todo o mês de março sem saber delas. Quando conseguiu notícias, “vieram com o senhor António Silva, um privado de Ovar que arranjou carrinhas e já lá foi três vezes. Trouxe 22 pessoas. Muitas dificuldades em sair de lá, numa viagem lenta e complicada. Vinham bébés que obrigavam a muitas paragens. Demoraram uma semana”.
Roman, por seu turno, estava a viver em Kiev na altura da invasão russa, conseguindo fugir com uma irmã para a fronteira com a Polónia. “Um dia mandou-me mensagem a dizer que estava na viagem para a Polónia”, revela M. demonstrando algum alívio que sentiu, quando recebeu essa notícia.

Com Kateryna a história foi diferente. “Elas lá não sabiam nada do que estava a acontecer pelo resto do país. Não havia comunicações. Só sabiam o que se passava por ali. Na terra onde vivem, Ivankiv, os russos estiveram um mês. Em outros sítios passavam, destruíam e iam embora. Mas em Ivankiv estabeleceram o quartel general.  É uma zona muito pobre. A região está toda minada”, contou Alice.

“Quando chegaram, no primeiro e segundo dia não falavam”. Alice tentou não ligar a televisão para não as perturbar. “Mas elas começaram a receber mensagens de outras pessoas e tomaram consciência de que tudo estava muito mau. A Kateryna começou então a contar o que se passou em Ivankiv. Viram tanques russos a passarem. Nunca lhes fizeram mal, mas não tinham água, nem luz, nem gás. Os russos faziam vídeos promocionais. Juntavam as populações num canto, davam-lhes pão, filmavam e mandavam os filmes para a Rússia para mostrarem como os tratavam bem. Mas ao mesmo tempo, roubavam-lhes pão e leite e iam vender às próprias populações. Mas nunca lhes fizeram mal”, refere Alice.

À medida que os dias passam Kateryna vai contando alguns pormenores. “Estivemos um mês sem tomarmos banho. Íamos buscar água e lavávamo-nos aos poucos. Se tínhamos gás, aquecíamos a água”, revelou Alice, explicando que “quanto à alimentação, durante o mês em que os russos lá estiveram, utilizaram as reservas que tinham em casa. Quando eles partiram, as lojas começaram a abrir e passaram a ter outros recursos. A casa de Kateryna não foi destruída, mas viu algumas serem-no. Na zona delas convinha manter-se tudo normal para possibilitar os tais vídeos promocionais, mas à volta havia destruição. Morreu um colega na escola de Kateryna, atingido por uma bala. Ela tenta disfarçar a tristeza que por vezes a invade com estas recordações, mas nota-se que está bastante afetada”, lamenta.

Já Roman, “está mais crescido, mais maduro”, segundo M., que também tentou ocultar ao menino as notícias que chegavam da Ucrânia, “mas a determinada altura percebi que ele sabia tudo, porque contatava com os irmãos todos os dias”. Apesar de ter passado por situações complicadas, M. não considera “que ele esteja traumatizado com a situação, pelo menos aparentemente”.

Para Alice, “a mãe de Kateryna está muito mais perturbada. Os seus olhos grandes azuis, testemunham uma grande tristeza. Há dias confessou-nos que o objetivo dela era ganhar algum dinheiro para voltar á Ucrânia e retomar a vida normal. Não está a ser fácil conseguir emprego. Ela é assistente social, mas não se consegue arranjar nada, devido à barreira da língua. Aqui em Portugal exigem que se fale português e ela só fala inglês. Mas o medo da guerra está cada vez maior. E também há as pilhagens e os roubos… mas o objetivo é voltar”.

Roman também está cá com a compromisso de, “quando as coisas melhorarem na Ucrânia, quando estiver estável, ele voltará, se desejar”, porque o jovem de 15 anos já frequenta o ginásio e até mesmo a escola secundária, onde está a completar o 10º ano de escolaridade online, com o acompanhamento de um professor na sala. Para além das aulas que tinha na Ucrânia, Roman frequenta ainda aulas de português uma vez por semana, o que melhora a socialização no nosso país.

Precisam-se apoios
Alice confessa, “o nosso objetivo é não deixar morrer o projeto. Em vez de trazermos para Ílhavo três crianças, queremos trazer muito mais. E isto não se consegue com pequenos apoios. Precisamos de empresas que se envolvam, que se interessem por estes casos. Temos tudo preparado para criar uma associação que até já tem nome e presidente e estatutos, mas o Covid primeiro, a guerra depois, veio parar tudo”.

Em Espanha, a associação tem uma abrangência enorme. Atribui bolsas de estudo e consegue pagar as despesas todas a cerca de 700 crianças. Organizam eventos e têm grandes empresas de suporte.

“Aqui, em Ílhavo”, continua, “nós conseguimos pagar as despesas das crianças que recebemos, mas o objetivo não é só esse. É alargar este apoio a outras crianças, proporcionar o nosso sol, o nosso mar a muitos outros meninos”.

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(Publicado originalmente em “O Ilhavense”, nº 1301, 15 de maio de 2022)