Recordo que, nos meus tempos de catraio, aí por volta dos nove, dez anos, na nossa terra se organizavam, pelo carnaval, corsos alusivos àquela época de diversão e folia, denominados por “batalha das flores”. Por norma, eram instituições de carácter cultural, recreativo e desportivo que as organizavam, com o propósito de angariar receitas para assegurarem o desenvolvimento das suas atividades e até a melhoria das suas instalações.
O desfile, com meia dúzia de camionetas onde nas respetivas carroçarias eram montadas estruturas alusivas a um tema, decoradas por raparigas que, ao longo de meses, faziam serões na confeção de flores multicores em papel, galvanizava as gentes da nossa terra. Naquele longínquo período a que me reporto, inícios da década de 50, o tema era dedicado ao mar, mais concretamente aos descobrimentos, pois, bem o recordo, um dos carros tinha bem assente no seu estrado uma caravela.
O desfile era feito no domingo gordo e na terça-feira de carnaval, percorrendo a zona envolvente do jardim Henriqueta Maia, cujas entradas eram vedadas com tapumes de madeira, para ser feita a cobrança dos ingressos. Por norma, nesses dias, Ílhavo era invadida por elevado número de forasteiros das zonas limítrofes, sendo Aveiro uma das terras cujos habitantes procuravam a nossa.
Mas foi efémera esta faceta ilhavense na forma de comemorar o carnaval, pois a inconstância das condições climatéricas nesta fase do ano, fizeram com que, por vezes, os corsos fossem impedidos de desfilar, acarretando, por consequência, prejuízos de grande monta. A “Batalha das Flores”, assim conhecida pelo arremesso de flores entre os participantes dos carros que desfilavam, deu lugar a outro tipo de celebração, que, conforme já escrevi neste jornal, as vedetas eram o Joaquim Borrão e o Padinhas, entre outros.
Na altura a que atrás aludo, o desfile, no domingo, não se realizou, dado que um grande vendaval, com fortes rajadas de vento e chuva intensa o impediu. Senti mais mágoa por ver a minha irmã de semblante triste e carregado pelo sucedido, já que eu, por estar há dois dias com fortes dores no ouvido direito, “estava condenado” a não sair de casa.
Mas, na terça-feira, o sol raiou logo pela manhã e pela forma como brilhava num céu azul e límpido, era a garantia de que o desfile iria para a rua. Logo o foguetório foi lançado a confirmar a decisão. Aí, sim, fiquei triste, desolado, por não poder assistir ao desfile. Perante a tristeza que o meu rosto retratava, a minha avó, catedrática nestas coisas pela sabedoria que a vida lhe deu, virou-se para o meu pai e disse: “vomecê, podia ir lá bacho, à botica do senhor Diniz Gomes, ver se ele arranja um remédio para o garoto poder ir ver o entrudo”. E lá foi o meu bom pai à Rua Direita, à botica, do senhor Diniz Gomes. O termo botica define que se trata de um estabelecimento onde se preparam e vendem medicamentos; farmácia. O boticário, ou, se quiserem, o farmacêutico, fazia jus ao papel que desempenhava, pois além de ser afável e extremamente atencioso para toda a gente, independentemente do seu estrato social, sabiamente preparava medicamentos numa pequena sala separada da parte comercial por uma porta localizada a meio do estabelecimento que, milagrosamente, surtiam efeitos curativos com grande rapidez. E eu que o diga, pois jamais esquecerei o alívio imediato que o medicamento preparado pelo senhor Diniz Gomes me proporcionou. Transportando num frasquinho de vidro bojudo um líquido amarelo/esverdeado, tapado com uma rolha de borracha, o meu pai disse à minha mãe: “O senhor Diniz Gomes recomendou para se aquecer ligeiramente o frasco na chaminé do candeeiro (sim, candeeiro a petróleo com a chama a ser fornecida pela torcida mergulhada naquele combustível. Convém recordar que a eletrificação da nossa terra estava em curso e nem toda a gente podia dispor dela). Duas ou três gotas foram introduzidas no ouvido doente e o “milagre” deu-se, já que pouco tempo depois uma sensação de alívio invadiu-me, por a dor ter desaparecido. E custou apenas quinze tostões, dizia com grande alegria o meu bondoso pai. Para os mais novos convém dizer que aquela importância, nos dias de hoje, é menos que uns insignificantes dez cêntimos.
E lá fui eu para a “Batalha das Flores”.
O Zeca Peliconcas, na CPI – Cabine de Publicidade Ilhavense, cujo slogan era “ CPI ao serviço dos ouvintes, comércio e indústria”, fazia rodar o disco com a canção brasileira, “Minha galera, só tem garota na guarnição”! Naquela altura, a CPI estava colocada, em instalações provisórias de madeira, no separador da avenida em frente ao antigo Atlântico Cine Teatro, fixando-se, posteriormente, no primeiro andar do edifício dos correios.
Ao passar por mim, a minha irmã, do carro onde ia, atirou-me para junto dos pés três rolos de serpentina e a minha felicidade redobrou.

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