O avizinhar da primavera, levou-me a recordar que era no início desta que a garotada era sujeita a uma provação que tanto a inquietava. Por mais que teimássemos junto de quem nos criava, por norma era a mãe que ficava com o odioso da nossa revolta, já que o pai, pelos seus afazeres profissionais, estava, implicitamente, arredio do envolvimento em tal tarefa.
Reporto-me a uma época já remota, sem exagero à volta de setenta anos, em que as condições de vida nada tinham a ver com as atuais e na então vila que era a nossa terra, a ruralidade, tirando a zona do centro, era notória. As casas, que enxameavam todas as ruas, por norma, eram térreas e salvo raras exceções em todas elas praticava-se o minifúndio, já que em pequenas leiras, nos quintais, se semeavam batatas, se plantavam couves, alfaces e outros produtos hortícolas, para complemento dos parcos rendimentos de que as famílias dispunham. A par da “agricultura” havia a criação, em pequenas capoeiras dispersas pelo quintal, de galinhas, coelhos e também, numa grande parte, o porco que era comprado no início do ano na feira dos 13 e abatido por alturas do Natal.
Reforço que naquela época também era habitual haver na maior parte das casas um cão, que até podia ser mansarrão, como o “Fartura” que estava em casa dos meus avós maternos com quem vivíamos, mas desde que ladrasse, como era o caso, se se aproximasse, pela calada da noite, algum amigo do alheio junto dos galinheiros a sua missão era exemplarmente cumprida e reconhecida pelos seus donos.
Indo ao cerne da questão que me levou a recordar aqueles idos tempos é que a garotada, independentemente do género, era “obrigada”, antes do verão, com o propósito de exterminar as lombrigas, a “engolir” um purgante. Já agora, aproveito para informar que lombriga é o nome vulgar dos parasitas que infestam muitos animais incluindo o homem, sendo também conhecidas por bichas, vermes e lombricoides. A coabitação com os animais domésticos a que atrás refiro, em especial o porco, bem como a deficiente alimentação a que a maioria estava sujeita, contribuíam, em grande parte, para que fosse imprescindível a tomada do purgante.
Não tenho dúvidas que as farmácias da nossa terra teriam, na altura, remédios para o extermínio dos parasitas que vagueavam pelos nossos tenros intestinos, mas quando a minha avó proferia a sentença à minha mãe “tens de ir ao senhor Maçónico buscar os purgantes prós garotos”, logo uns suores frios envolviam o meu corpo e o pensamento conduzia-me às náuseas que só a ideia de ir enfrentar o suplício me provocavam. Eu bem argumentava que não tinha bichas (a minha avó dizia que não valia a pena refilar, pois as olheiras encovadas e a cor macilenta do rosto eram a prova de que o meu corpo estava “tcheinho com os estipores das bichas”).
E o desassossego invadia-me a alma até ao dia em que a minha mãe ia ao senhor Maçónico buscar o ”veneno” para dizimar as lombrigas. O senhor Maçónico, como era conhecido o senhor Luís, ocupava uma sala no início da rua de José Estêvão, na nossa terra, no edifício onde posteriormente se instalou o senhor António Loureiro com uma oficina de reparação e venda de bicicletas. Espalhados pela sala estavam alguns recipientes com sementes diversas, presumindo-se que a venda de tais produtos fosse o principal negócio daquele homem alto, afável, de esmerada educação e sempre impecavelmente vestido, além de um trato incomum, para a época, com toda a gente. Havia também quem afirmasse que na mesma sala, em certos dias, à noite, se reuniam elementos da maçonaria e que alguns cânticos eram entoados.
Os menos esclarecidos, naquela época dos anos de 1950, evitava até passar junto da sala, circulando pelo outro lado da rua, pois sentiam-se atemorizados por aquele espaço ser frequentado por maçónicos, mas convém realçar, que a maçonaria é denominada como sendo uma sociedade secreta cuja doutrina tem como rótulo a fraternidade e a filantropia universais e que usa como símbolo os instrumentos do pedreiro e do arquiteto (o triângulo e o compasso). A introdução da maçonaria em Portugal remonta ao segundo quartel do século XVIII, talvez por 1727 e foi fundada por comerciantes fixados em Lisboa através de uma loja que ficou conhecida nos registos da Inquisição como dos Hereges Mercantes, por serem protestantes quase todos os seus membros. Depois desta divagação, voltemos, à sala do senhor Maçónico, pois era num pequeno gabinete contíguo a esta, que eram preparadas algumas mezinhas que competiam com os remédios das farmácias por serem mais baratas e o purgante mais repulsivo que se possa imaginar, dado o seu cheiro pestilento e de sabor intragável, mas que rapidamente dizimava o inimigo que consumia os nossos franzinos corpos. Era feito de rícino, uma planta originária de África e de que cujas sementes se extraía um óleo que virava um poderoso purgante.
No dia da purga, “in-extremis”, tentava, com choraminguices, dissuadir a minha santa mãe de me aplicar tão complicado castigo, mas, irredutível, ripostava que a canja já estava feita e não podia ficar para outro dia senão o purgante perdia força. Para ter coragem de enfrentar o suplício, vinha à minha memória o que era contado sobre um rapaz de uma das Gafanhas, que havia morrido com um ataque de lombrigas e quando estava a ser velado no caixão, as bichas saíam-lhe pelos ouvidos, nariz e boca. Santa ignorância acreditar em tal boato… mas era a única forma de dar o corpo ao manifesto e abrir a boca para engolir a mistela, dando-me a minha mãe, logo de seguida, uma colher de sumo de laranja para disfarçar o sabor enjoativo do malfadado remédio. Depois… bem… depois, passados uns bons minutos, começava a maratona da corrida para “ir ao bacio” aonde era expelido um líquido amarelado e viscoso e notório o número de lombrigas que tinham acabado o seu reinado.
E a segurança voltava, com a certeza de que só no ano seguinte se repetiria a dose.

Por João Fernando

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