Pronto, desisto. Não dá. Ao fim de sete ou oito rascunhos, de escrever e apagar, escrever e apagar, desisto. Não é possível escrever sobre outra coisa porque não existe outra coisa. Aliás, faz parte do que a coisa é entrar em tudo, dos nossos corpos à nossa linguagem, e talvez por isso me seja tão difícil chamar-lhe outra coisa que não essa. Começo a escrever c, o…coisa, fiquemos por aqui e deixemos o termo correto aos jornalistas e aos comunicados oficiais. Mas não me consigo impedir de a deixar impregnar estas palavras.
Estamos plenamente suspensos agarrados ao microscópio. A olhar com a maior atenção ao que é mais minúsculo: sei quantas vezes lavei hoje as mãos: dezassete. Sei no que toquei e no que não toquei. Sei as viagens e interações de tudo o que tenho em casa. Quantas vezes levei as mãos à cara desde que comecei a escrever isto? Nenhuma. Quantas vezes o evitei? Pelo menos três.
A banalidade domina os nossos dias. O que comemos, como compramos o que comemos, como comemos o que comemos. A quantos metros estamos daqueles com quem comemos. No meio disso, conversamos, para distrair, sobre temas mais ligeiros: a economia, a política ou o futuro de uma Europa inevitavelmente partida.
Um telefone toca e perguntam-nos “tudo bem por aí?”, e sabemos que a pergunta está carregada de um sentido completamente novo; carregada da coisa. Respondemos e devolvemos a pergunta e falamos uns minutos sobre isso e como estamos a lidar com isso. É conversa de circunstância, mas que circunstância.
E streams, diretos, redes sociais e mensagens fazem a nossa vida com os outros. Àqueles, pelo menos, a quem o privilégio permite o grande privilégio do isolamento. E nessa forma de relação, totalmente transformada pela coisa, a coisa adensa-se dentro de nós, nos nossos gestos, nas nossas rotinas, nos nossos reflexos.
Nisto, a vida, a linguagem, a conversa, a televisão encarregam-se de nos impregnar dela. Não fisicamente, como tememos, mas psicologicamente e espiritualmente, pela forma como tememos. A coisa microscópica a que um Presidente da República já declara guerra (uma guerra bizarra em que se salvam vidas em vez de as eliminar) e à qual um sentido patriótico decide cantar o hino nacional, talvez tudo isso na crença de que tenha bilhete de identidade ou passaporte. E a coisa torna-se mais do que em coisa, em mito, em ente, em Outro. E aí, verdadeiramente, domina-nos e mata-nos muito mais do que os corpos.
Dizem que é como falar do tempo, falar da coisa. Conversa de circunstância. Mas que circunstância. Mas que tempo. Mas que coisa.